– Quem sabe? – disse ela. – Se eu soubesse onde voce estaria e tivesse umas semanas de ferias, bem poderia aparecer…

Era pura chantagem e ambos sabiamos disso. Mas era outra coisa, tambem. Eu ia para o estrangeiro com a intencao de me perder. Tinha dito a Hank que de vez em quando lhe escreveria, mas isso era diferente. Ele nunca saberia onde eu estaria. Olhando para aquela mulher desejavel a minha frente, compreendi que nao me queria perder completamente, cortar todos os lacos que me prendiam aos Estados Unidos, nao ter ninguem no meu pais que pudesse, in extremis, mandar-me um bilhete, mesmo que fosse so 'Feliz aniversario' ou 'Sera que voce pode me emprestar cem dolares?'

– Se se sentir tentado a abrir isto… – ela tocou o envelope – e ler o que esta ai dentro, faca-o, Naturalmente, eu preferiria que voce nao o fizesse. Mas lhe asseguro que nao ha nada ai que possa prejudica-lo.

Peguei o envelope e coloquei-o no bolso de dentro do paleto. Estava ligado a ela, mesmo que apenas pela recordacao de uma unica noite, e ela sabia disso. Se se sentia ligada a mim, era outra historia. – Nao vou abri-lo.

– Tinha certeza de que podia contar com voce, Grimes – retrucou ela.

– Da proxima vez em que nos encontrarmos – falei -, por favor, trate-me pelo meu primeiro nome.

– Combinado – disse ela. Olhou para o relogio. – Se voce ja terminou o cafe – acrescentou -, pago e podemos ir. Tenho um encontro na Virginia.

– Oh! – exclamei, procurando nao parecer muito desapontado. – Pensei que poderiamos passar a tarde juntos.

– Acho que vai ter que ficar para outra vez – disse ela.

– Se nao quiser passar a tarde so, acho que Brenda, minha colega de apartamento, esta com a tarde livre. Ela achou voce muito simpatico. Por que nao lhe telefona?

– Talvez – disse eu, grato pelo fato de o restaurante estar na penumbra. Tinha certeza de que corara. Mas a sugestao dela irritou-me. – Seus amantes sao sempre compartilhados?

Ela olhou firme para mim, absolutamente calma.

– Acho que ja lhe disse uma vez que voce nao era meu amante. – E chamou o garcom para lhe trazer a conta.

Nao telefonei para a colega de Evelyn. Resolvi nao lhe dar essa satisfacao. Passei a tarde passeando por Washington. Agora que sabia, pelo menos por alto, o que havia por tras daquelas imponentes colunas, dos longos corredores, daquelas copias de templos gregos, nao me sentia impressionado. Roma, pensei, pouco antes da invasao dos godos. Ocorreu-me que talvez nunca mais eu voltasse, embora a ideia nao me entristecesse. Mas, pela primeira vez em tres anos, senti-me horrivelmente so.

Ao entrar no hotel, ao anoitecer, decidi sair de Washington naquela mesma noite. Quanto mais cedo eu saisse do pais, melhor. Arrumando as malas, lembrei-me do clube de esqui de George Wales. Qual era mesmo o nome? O Christie Ski Club. Nao era preciso preocupar-se com excesso de bagagem, nem com a alfandega suica, e a bordo, se podia tomar, gratis, tudo quanto era bebida. Nao tinha a intencao de chegar economicamente bebado e pisar em solo europeu, trocando as pernas, mas, com a bagagem que eu ia levar, passar pela alfandega suica com um sorriso de boas- vindas tinha as suas atracoes. Alem disso, se alguem estivesse procurando o funcionario que tinha fugido do Hotel St. Augustine com cem mil dolares em notas de cem, o ultimo lugar em que se lembrariam de procurar seria o balcao onde trezentos e cinquenta garrulos suburbanos estariam embarcando para uma temporada de neve na Suica, da qual retornariam em massa dali a tres semanas para os Estados Unidos.

Ia fechar a segunda mala, quando o telefone tocou. Nao estava com vontade de falar com ninguem, de modo que deixei tocar. Mas tocou tanto, que acabei atendendo.

– Sei que voce esta ai… – Era a voz de Evelyn Coates. – Estou aqui no bali e perguntei na portaria se voce estava no hotel.

– Que tal a Virginia? – perguntei, secamente.

– Digo-lhe quando subir. Posso subir, nao posso? – perguntou ela, hesitante.

– Acho que sim – respondi.

Ela riu, risinho triste.

– Nao brigue comigo – falou. E desligou.

Abotoei o colarinho de minha camisa, endireitei a gravata e vesti o paleto, pronto para todas as formalidades.

– Horrivel! – exclamou ela, mal entrou no quarto e olhou em volta. – A era do cromado.

Ajudei-a a tirar o casaco, porque ela ficou de pe, com os bracos abertos, como se estivesse a espera.

– Nao pretendo passar o resto da minha vida aqui – falei.

– Estou vendo – retrucou ela, olhando para a mala fechada, sobre a cama. – Ja esta indo embora?

– Estava.

– Preterito imperfeito.

– E. – Estavamos de pe, um diante do outro.

– E agora?

– Nao estou assim com tanta pressa. – Nao fiz o menor esforco para po-la a vontade. – Pensei que voce havia dito que tinha um encontro, hoje a tarde… na Virginia.

– E tive – disse ela. – Mas durante a tarde ocorreu-me que havia uma pessoa que eu tinha uma vontade louca de ver e que essa pessoa estava em Washington. Por isso e que estou aqui. – Sorriu hesitantemente. – Espero nao estar incomodando.

– Ora! – falei.

– Nao vai me convidar para sentar?

– Desculpe – falei. – Claro.

Ela sentou-se, com graca feminil, cruzando os tornozelos. Devia ter andado no frio da Virginia, porque tinha as faces rosadas.

– Que mais lhe ocorreu? – perguntei, ainda de pe, mas a boa distancia dela.

– Algumas coisas mais – respondeu ela. Estava usando luvas de dirigir marrons e descalcou-as, deixando-as cair no regaco. Seus longos dedos, ageis com as cartas, habeis com os homens, brilhavam a luz do abajur sobre a mesa ao lado dela. – Nao gostei da maneira como lhe falei, ao almoco.

– Ja ouvi coisas piores – comentei.

– Tudo no mais puro e cinico washingtones. – Meneou a cabeca. – E preciso defender-se a todo momento. Deformacao profissional da maneira de falar. Mas nao precisava me defender de voce. Desculpe.

Aproximei-me e beijei-lhe o alto da cabeca. O cabelo dela cheirava a campo no inverno.

– Nao tem de que pedir desculpa. Nao sou assim tao fragil.

– Talvez eu ache – disse ela. – Naturalmente, voce nao ligou para Brenda.

– Logico que nao.

– Que coisa estupida eu fui dizer! – Suspirou. – Nos fins de semana, preciso aprender a deixar a armadura em casa. – Sorriu para mim, seu rosto suave e jovem a luz do abajur.

– Esqueca o que eu lhe disse, esta bem?

– Se voce quiser. Que mais lhe ocorreu, la na Virginia?

– Que a unica vez em que tinhamos dormido juntos tinhamos ambos bebido demais.

– Sem duvida.

– Pensei que seria otimo nos amarmos sem ter bebido. Voce bebeu alguma coisa depois do almoco?

– Nao.

– Eu tambem nao – disse ela, levantando-se e abracando-me.

Dessa vez, permitiu que eu a despisse. No meio da noite, ela murmurou:

– Voce deve ir embora logo de manha. Se ficar mais um dia, talvez eu nao o deixe ir. E isso nao e possivel, nao?

Quando acordei, de manha, ela ja se fora. Deixara um bilhete em cima da mesa, escrito na sua letra obliqua e ousada.

'O fim de semana acabou. Ja e segunda-feira. Por favor, nao leve a serio nada do que eu disse. E.'

Vestira a armadura para mais uma semana de trabalho. Amassei o bilhete e joguei-o na cesta de lixo.

CAPITULO VIII

Apanhei o passaporte no dia seguinte. O Sr. Hale nao estava em seu gabinete, disse a Srta. Schwartz, mas deixara todas as instrucoes. Eu estava quase certo de que ele nao estava em seu gabinete, porque, no fim de semana, chegara a conclusao de que nao se sentiria bem se me visse de novo. Pelo menos, na presenca da Srta. Schwartz. Nao era a primeira vez que um homem se arrependia, a luz do dia, das confidencias que fizera a meia-noite.

A Srta. Schwartz estava tao linda e melodiosa como da primeira vez, mas nao senti inveja de Jeremy Hale.

Descontei os cheques do jogo de poquer e, munido do dinheiro, dirigi-me a uma loja de departamentos e comprei duas malas fortes, mas leves e bonitas, azul-escuras com debruns vermelhos, uma grande, outra pequena. Custaram-me caro, mas eu queria malas seguras e nao pechinchas. Comprei tambem uma espacosa pasta de couro modelo 007, com fecho bem resistente e que cabia dentro da maior das duas malas. Sentia-me agora armado para viajar, Ulisses com seus navios calafetados e vento favoravel, perigos desconhecidos esperando-o no proximo promontorio.

O vendedor perguntou que algarismos eu queria por na combinacao.

– E preferivel – aconselhou – escolher um numero que signifique algo para o senhor, que o senhor nao va esquecer.

– 6-0-2 – falei. Era um numero que significava muito para mim e que eu duvidava que alguma vez esquecesse.

Com as malas novas no porta-malas do carro alugado, as tres da tarde eu estava a caminho de Nova York. Telefonara ao meu irmao, dizendo-lhe para me esperar em frente ao meu banco, as dez da manha do dia seguinte.

Parei num motel nos arredores de Trenton, para passar a noite. Nao queria permanecer em Nova York mais tempo do que precisava.

Sabendo que estava cometendo um erro, acumulando arrependimentos para o futuro, liguei para o numero de Evelyn, em Washington. Nao sabia o que iria lhe dizer, mas queria ouvir a voz dela. Deixei o telefone tocar umas doze vezes. Felizmente, nao havia ninguem em casa.

Ao dirigir pela Park Avenue acima, rumo ao banco, parei num sinal na esquina da rua onde estava localizado o St. Augustine. Impulsivamente, quando a luz ficou verde, entrei na rua e passei lentamente diante da entrada falsamente elegante, chegando a pensar mesmo em entrar e perguntar por Drusack. Nao, nao eram saudades. Havia algumas perguntas que ele agora talvez me pudesse responder. E a sua provavel raiva me teria alegrado a manha. Se tivesse havido um lugar onde estacionar, eu teria feito a bobagem de entrar no hotel. Mas a rua estava toda bloqueada por

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