As luzes de amarrar o cinto e nao fumar se acenderam e o aviao comecou a descer da zona do sol da manha. Os picos cobertos de neve dos Alpes brilhavam a distancia quando o 747 penetrou na nevoa cinzenta que envolvia as cercanias do Aeroporto de Kloten.

O grandalhao sentado a meu lado roncava escandalosamente. Entre as oito e a meia-noite, quando eu desistira de continuar contando, ele bebera onze doses de uisque. Sua espora, no assento ao lado, mantivera o ritmo de um uisque para cada dois dele. Tinham-me dito que planejavam pegar o primeiro trem de Zurique para St.Moritz e esquiar no Corvatch nessa mesma tarde. Lamentava nao estar presente para ve-los descer a primeira encosta.

O voo nao fora tranquilo. Como todos os passageiros eram socios do mesmo clube de esqui e muitos deles viajavam juntos todos os invernos, tinha havido grandes manifestacoes, risadas, brincadeiras, etc, acompanhadas por abundante consumo de bebidas. Os passageiros nao eram jovens. Na sua maioria, tinham trinta e poucos ou quarenta e pouco anos, os homens pertencendo aparentemente a vaga categoria dos executivos e as mulheres, donas-de-casa tipicas e cuidadosamente penteadas, cujo maior atributo social era saber beber tao bem quanto os maridos. Podia-se imaginar uma determinada porcentagem de troca de esposas nos fins de semana. Se eu tivesse que fazer um calculo, diria que a renda media familiar dos passageiros do charter era de uns trinta e cinco mil dolares anuais e que seus filhos tinham todos belas cadernetas de poupanca abertas por vovo ou vovo, a fim de evitar ao maximo os impostos sobre herancas.

Se havia passageiros naquele aviao lendo calmamente ou olhando para as estrelas e o nascer do dia, eles nao estavam no meu lado do aviao. Nao tendo bebido, eu contemplava os meus 'altos' e barulhentos companheiros de viagem com repugnancia. Num pais menos livre do que os Estados Unidos, pensei, nao lhes teriam permitido viajar. Se meu irmao Hank estivesse a bordo, lembrei com pena, teria sentido inveja deles.

Fizera calor no aviao e eu nao pudera tirar o paleto porque minha carteira, com o dinheiro e o passaporte, estava nele, e ela era demasiado grande e estava muito cheia para caber no bolso das minhas calcas.

O aviao pousou suavemente e, por um momento, tive inveja dos homens que pilotavam aquelas maquinas maravilhosas. Para eles, o que interessava era a viagem, nao o valor da carga. Procurei ser um dos primeiros passageiros a sair do aviao. Na alfandega, passei pela porta reservada para os passageiros sem nada a declarar. Tive a sorte de ver as minhas duas malas, ambas azuis, uma grande, outra pequena, sairem logo. Agarrei um carrinho, joguei as malas dentro dele e sai da alfandega sem que ninguem me detivesse. Pelo que via, os suicos eram muito tolerantes com os turistas prosperos.

Entrei num taxi que estava esperando e mandei seguir para o Hotel Savoy. Tinha ouvido dizer que se tratava de um bom hotel, no centro comercial.

Nao tinha trocado nenhum dinheiro em francos suicos, mas quando chegamos ao hotel o motorista aceitou duas notas de dez dolares. Mais dois ou tres dolares do que teria sido se eu tivesse francos, mas resolvi nao discutir com o homem.

Na portaria do hotel, enquanto preenchia a ficha, perguntei ao recepcionista o nome e o telefone do banco particular mais proximo. Como a maioria dos americanos, tinha apenas uma nocao muito vaga do que eram os bancos suicos, mas acreditava firmemente, pelo que lera em artigos de jornais e revistas, na sua capacidade em esconder dinheiro com toda a seguranca. O homem escreveu um nome e um numero, como se esse fosse o primeiro servico pedido por todos os americanos que se hospedavam no hotel.

Outro empregado subiu comigo para me mostrar o quarto, que era grande e confortavel, com moveis pesados e antigos, e muito limpo, como sempre ouvira dizer dos hoteis suicos.

Enquanto esperava que minhas malas subissem, peguei o telefone e dei a telefonista o numero que o recepcionista me fornecera. Eram nove e meia da manha na Suica, quatro e meia da madrugada em Nova York, mas, embora nao tivesse pregado o olho no aviao, nao me sentia cansado.

Uma voz atendeu em alemao.

– A senhora fala ingles? – perguntei, lamentando pela primeira vez na vida nao saber sequer dizer 'bom dia' em nenhuma lingua senao a minha.

– Sim – respondeu a mulher. – Com quem deseja falar?

– Gostaria de marcar hora para abrir uma conta – expliquei.

– Um momento, por favor – disse ela. Quase imediatamente, uma voz de homem anunciou:

– Aqui fala o Dr. Hauser. Bom dia!

Ah, entao, na Suica, os homens a quem se confiava dinheiro eram doutores. Por que nao? O dinheiro era ao mesmo tempo uma doenca e uma cura.

Disse ao doutor o meu nome e expliquei, mais uma vez, que desejava abrir uma conta. Ele disse que me esperaria as dez e meia e desligou.

Bateram a porta e o rapaz das malas apareceu com minha bagagem. Pedi desculpas por nao ter dinheiro suico para lhe dar uma gorjeta, mas ele apenas sorriu, disse 'obrigado' e saiu. Comecei a sentir que ia gostar muito da Suica.

Girei a combinacao para abrir a mala grande. Nada. Tentei mais uma vez… e, de novo, nada. Tinha certeza de que os numeros estavam certos. Peguei a mala pequena, que tinha a mesma combinacao, e ela abriu logo.

– Diabo! – praguejei. A mala grande provavelmente levara algum encontrao e a fechadura ficara danificada. Nao tinha nada a mao com que forcar o fecho. Nao queria que ninguem mais mexesse na mala, de modo que desci a portaria e pedi uma grande chave de fenda. O vocabulario ingles do recepcionista nao incluia a expressao 'chave de fenda', mas finalmente consegui faze-lo compreender, atraves de gestos complicados, o que queria. Ele falou qualquer coisa em alemao para um colega e, dois minutos depois, o homem voltava com uma chave de fenda.

– Ele pode subir com o senhor – disse o recepcionista – e ajuda-lo a abrir a mala.

– Acho que nao vai ser preciso, obrigado – respondi, e voltei ao meu quarto.

Levei cinco minutos lutando para forcar a fechadura e, quando ela finalmente abriu, chorei a minha bela mala nova. Teria de mandar por outra fechadura, se fosse possivel.

Levantei a tampa. Bem em cima estava um paleto esporte de um xadrez espalhafatoso, gigante. Um paleto que nunca fora meu.

Tinha pegado a mala errada no aeroporto. Uma igualzinha a minha, do mesmo tamanho e fabricante, da mesma cor, azul-escura debruada em vermelho. Praguejei contra o sistema de fabricacao e venda em massa vigente nos Estados Unidos, onde todo mundo fabrica e vende um milhao de copias identicas de qualquer artigo.

Deixei cair a tampa e fechei a mala dos lados. Nao estava interessado em remexer nos pertences de outro. Ja bastava eu ter quebrado a fechadura. Depois, desci de novo ate a portaria. Devolvi a chave de fenda ao recepcionista e expliquei-lhe o que acontecera, pedindo-lhe para ligar para o aeroporto e perguntar se qualquer dos outros passageiros do meu voo tinha comunicado uma troca de malas e, em caso afirmativo, como e onde eu poderia apanhar a minha mala.

– O senhor tem os taloes de bagagem? – perguntou ele. Procurei nos bolsos, enquanto o recepcionista olhava, condescendente.

– Acidentes acontecem. E preciso preve-los – sentenciou ele. – Sempre que viajo, colo uma enorme etiqueta colorida com as minhas iniciais em todas as minhas malas.

– Otima ideia – concordei. – Farei isso no futuro. – Nao tinha os bilhetes da bagagem. Sem duvida os jogara fora quando passara pela alfandega e vira que nao eram mais necessarios. – O senhor poderia telefonar agora? Nao sei falar alemao e…

– Vou telefonar – disse ele. Pegou o fone e pediu um numero.

Cinco minutos depois, apos uma agitada conversa em alemao-suico, interrompida por longa espera que o recepcionista preencheu tamborilando com as pontas dos dedos sobre o balcao, ele desligou.

– Ninguem comunicou nada -. disse ele. – Vao telefonar para aqui se houver alguma noticia. Quando o passageiro que pegou sua mala chegar ao hotel, sem duvida vai notar que houve uma troca e tentara comunicar-se com o aeroporto.

– Obrigado – agradeci.

– De nada – disse ele, com uma curvatura. Subi para meu quarto.

'Quando o passageiro abrir a mala no hotel,' dissera o recepcionista. Mas eu tinha ouvido algumas conversas no aviao. Devia haver uns quinhentos locais onde se esquiava na Europa e, pelo que eu ouvira, minha mala naquele momento poderia muito bem estar a caminho de Davos, Chamonix, Zermatt, Lech ou… abanei a cabeca, desesperado. Quem quer que estivesse com minha mala poderia nao tentar abri-la senao no dia seguinte. E, quando isso acontecesse, provavelmente faria como eu e arrebentaria a fechadura. So que talvez nao tivesse os mesmos escrupulos que eu em remexer nas coisas dos outros.

Levantei a tampa da mala sobre a cama e olhei para o paleto quadriculado. Tive um pressentimento de que teria problemas com um homem capaz de usar um paleto daqueles. Voltei a fechar a mala.

Peguei no telefone e dei o numero do banco. Assim que atenderam, pedi de novo para falar com o Dr. Hauser. Ele se mostrou muito amavel quando eu lhe disse que infelizmente nao poderia ir naquele dia. Especialista em crises de moedas internacionais, nao se alterava com pequenos contratempos. Disse-lhe que procuraria marcar uma hora para o dia seguinte.

– Estarei as suas ordens – retrucou.

Depois que ele desligou, fiquei muito tempo olhando para o telefone. Nao havia nada a fazer senao esperar.

'Acidentes acontecem', disse o recepcionista. 'E preciso preve-los.'

O conselho chegara um pouco tarde.

CAPITULO IX

Nos dois dias seguintes, fiz o recepcionista telefonar para o aeroporto uma meia duzia de vezes. A resposta era sempre a mesma. Ninguem do clube de esqui tinha comunicado a troca de uma mala.

Andando para um lado e para o outro no quarto sombrio, meus nervos a ponto de estalarem, lembrei-me do velho ditado, segundo o qual as coisas mas vem sempre em tres. Ferris morrera, Drusack estava no hospital e, agora, isto. Deveria ter tido mais cuidado? Como homem supersticioso, deveria ter ligado mais para a supersticao. O quarto de hotel, que a primeira vista me parecera tao acolhedor, agora so fazia aumentar minha depressao, e resolvi dar longos passeios a pe pela cidade, esperando cansar-me o suficiente para, pelo menos, dormir a noite. O clima de Zurique no inverno nao conduz a alegria. Sob o ceu plumbeo, ate mesmo o lago parecia ter passado seculos numa caixa-forte.

No segundo dia, reconheci-me derrotado e resolvi, finalmente, tirar para fora as coisas da mala que trouxera por engano. Nao havia nela nada que identificasse o seu proprietario, nem livros de enderecos, nem taloes de cheques, nem livros de especie alguma, nem contas ou fotografias, assinadas ou nao, nem sequer monogramas. Seu dono devia ter uma saude de ferro… nenhum estojo de barbear de couro, nao havia nenhum frasco de remedio que pudesse ter o nome no rotulo, apenas pasta e escova de dentes, gilete, aspirina, talco e um vidro de agua-de-colonia.

Comecei a suar. Iria eu ser eternamente perseguido por fantasmas, que penetravam um momento na minha vida, alteravam-na e depois saiam dela, sem se identificar?

Recordando historias policiais que tinha lido, procurei etiquetas de alfaiates nos paletos dos ternos. Embora as roupas fossem bastante boas, todas pareciam confeccionadas por grandes fabricantes, que as distribuiam a lojas espalhadas pelos Estados Unidos. Algumas camisas tinham marcas de lavanderia.

Era possivel que, com tempo, o fbi pudesse seguir essa pista, mas para isso era preciso que eu tivesse coragem de lhe pedir ajuda.

Havia uma calca de esqui vermelho-vivo e um anoraque de nailon amarelo-limao. Abanei a cabeca. Que se poderia esperar de um homem capaz de surgir nas pistas de esqui parecendo uma bandeira de algum pequeno pais tropical? Ate que combinava com o paleto de quadriculado gigante. Tinha de prestar atencao em todos os esquiadores vestidos de maneira berrante que me surgissem pela frente.

Havia uma pista, se se lhe podia chamar assim. Junto com os dois ternos, a calca de flanela e o paleto quadriculado, havia um smoking. Talvez isso significasse que o meu homem pretendia passar pelo menos parte do seu tempo num lugar elegante, onde as pessoas se vestiam para jantar. O unico lugar desse tipo de que eu tinha ouvido falar era o Palace Hotel de St.Moritz, mas devia

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