carros e resolvi ir em frente.

Hank estava todo encurvado no seu sobretudo, o colarinho virado para cima, parecendo gelado e miseravel sob o vento cortante, quando me aproximei do banco. Se eu fosse um policial, pensei, teria desconfiado dele, acharia que era suspeito de algum pequeno crime, como passar dinheiro falso, abusar da confianca de uma viuva, vender joias roubadas.

Seu rosto se iluminou quando me viu, como se tivesse duvidado de que eu viesse, e deu um passo em minha direcao, mas nao parei.

– Encontre-me na proxima esquina – disse-lhe, ao passar por ele. – Nao vou demorar nada. – A menos que alguem estivesse por perto e de sobreaviso, ninguem poderia dizer que havia alguma ligacao entre nos. Eu tinha a sensacao desconfortavel de que a cidade era um olho gigantesco, focalizado em mim.

No subterraneo do banco, o mesmo velho, mais palido do que nunca, pegou na minha chave e, usando-a junto com a dele, abriu meu cofre e entregou-me a caixa de aco. Depois, levou-me de volta ao cubiculo protegido com uma cortina e deixou-me a sos. Contei as duzentas e cinquenta notas de cem dolares e coloquei-as num envelope pardo, que comprara em Washington. Estava me tornando um grande consumidor de envelopes pardos e, sem duvida, dando um grande impulso a toda a industria.

Hank estava a minha espera na esquina, diante de um cafe, parecendo mais gelado do que nunca. Olhou para o envelope pardo debaixo do meu braco com ar medroso, como se ele fosse explodir. A vidraca do cafe estava embaciada pelo vapor do aquecimento, mas dava para ver que o recinto estava quase vazio. Fiz sinal a Hank para que me seguisse e entrei. Escolhi uma mesa nos fundos, pousei o envelope e tirei o sobretudo. Fazia um calor sufocante no cafe, mas Hank sentou-se diante de mim sem tirar o sobretudo, nem o velho e ensebado chapeu de feltro que usava, de maneira quadrada e demodee. Seus olhos, por tras dos oculos que se lhe enterravam nos lados do nariz, escorriam lagrimas de frio. Sua cara era a de um velho suburbano, envelhecida por anos de ansiedade e dias passados em ambientes fechados, como a dos homens a espera dos trens nas escuras manhas de inverno, pacientes como burros, cansados muito antes de comecarem mais um longo dia de trabalho. Senti pena e, ao mesmo tempo, uma vontade enorme de me ver logo livre dele.

'Aconteca o que acontecer,' pensei, 'nao vou ter essa cara quando for da sua idade.' Ainda nao tinhamos trocado uma palavra.

Quando a garconete se aproximou da nossa mesa, pedi uma xicara de cafe.

– Estou precisando de um drinque – disse Hank, mas tambem pediu cafe.

Contra uma parede divisoria, junto da nossa mesa, havia uma ranhura para moedas e um seletor para vitrola perto da entrada. Coloquei dois niqueis e girei o seletor ao acaso. Quando a garconete voltou com os nossos cafes, a vitrola estava tocando tao alto, que ninguem me poderia ter ouvido na mesa do lado, a menos que eu gritasse. Hank bebeu avidamente o seu cafe. Nao cheirava a canela, rum ou laranja.

– Vomitei duas vezes, esta manha – disse ele.

– O dinheiro esta aqui – falei, indicando o envelope.

– Puxa, Doug – disse Hank -, espero que voce saiba o que esta fazendo.

– Eu tambem – retruquei. – Seja como for, agora ele e seu. Vou sair primeiro. Daqui a dez minutos, voce pode sair tambem. – Nao queria que ele visse meu carro alugado e anotasse o numero da placa. Eu nao tinha planejado nada daquilo e nem achava que fosse realmente necessario, mas a cautela estava se tornando um habito para mim.

– Voce nunca se arrependera do que esta fazendo – garantiu ele.

– Eu sei que nao.

Puxou de um lenco amassado e enxugou as lagrimas que lhe escorriam dos olhos.

– Disse aos dois rapazes que esta semana teria o dinheiro – falou. – Estao loucos de alegria. Aceitaram logo a proposta. – Abriu o sobretudo e meteu a mao por baixo de um velho cachecol cinzento, que pendia do seu pescoco como uma cobra morta. Tirou uma caneta e uma pequena agenda. – Vou escrever um recibo.

– Nada disso – atalhei. – Sei que lhe dei o dinheiro e voce sabe que o recebeu. – Ele nunca me pedira recibos, quando me dera ou emprestara dinheiro.

– Daqui a um ano, voce vai ser rico, Doug – disse ele.

– Otimo! – exclamei. O otimismo dele era lastimavel.

– Nao quero nada escrito. Nada. Como contador, imagino que voce saiba controlar o que me couber sem que isso conste dos livros. – Lembrava-me do que Evelyn Coates dissera a respeito dos xerox. Tinha quase certeza de que em Scranton tambem havia xerox.

– E, acho que sim – disse ele, com tristeza. Escolhera a profissao errada, mas agora era demasiado tarde para fazer alguma coisa.

– Nao quero que a Secretaria de Financas fique atras de mim.

– Compreendo – disse ele. – Nao vou dizer que gosto disso, mas entendo. – Sacudiu sombriamente a cabeca. – Voce e o ultimo homem a quem eu…

– Chega, Hank – atalhei.

O primeiro disco da vitrola automatica terminou num climax ensurdecedor e a voz da garconete, transmitindo um pedido ao homem do balcao, soou estranhamente alta no silencio que se seguiu.

– Ovos com bacon e um ingles.

Tomei mais um gole de cafe e levantei-me, deixando o envelope em cima da mesa. Vesti o sobretudo.

– Vou ficar em contato com voce. De tempos em tempos. Ele sorriu debilmente e pos a mao sobre o envelope.

– Cuide bem de voce, garoto – falou.

– E voce tambem. – Toquei-lhe o ombro e sai para o frio.

O meu voo estava marcado para as oito da noite de quarta-feira.

As duas e meia da tarde de quarta-feira, deixei uma nota de cem dolares na caixa-forte e sai do banco com setenta e dois mil e novecentos dolares na pasta 007 que comprara em Washington. Estava farto de envelopes pardos. Nao saberia explicar, nem sequer para mim, por que razao deixara os cem dolares no banco. Supersticao? Uma forma de prometer a mim mesmo que algum dia voltaria aos Estados Unidos? De qualquer maneira, pagara adiantado pelo aluguel da caixa por um ano.

Dessa vez, havia-me hospedado no Waldorf Astoria. A essa altura, quem quer que estivesse a minha procura ja teria pensado que eu saira da cidade. Voltei ao meu quarto, abri a pasta e tirei tres mil dolares, que coloquei na nova carteira de pele de foca que comprara. Era suficientemente grande para conter meu passaporte e a passagem de ida e volta no charter. Nos escritorios do Christie Ski Club, -na 47 th Street, aonde tinha ido logo depois de deixar Hank no cafe, perguntara pela amiga de Wales, Srta. Mansfield, que automaticamente me preenchera uma proposta de socio e a pre-datara, dizendo-me que eu estava com sorte, pois naquela manha tinham recebido dois pedidos de cancelamento. Como quem nao quer nada, perguntei-lhe se os Wales tambem iam naquele voo. Ela olhou na lista e, para meu alivio, disse que nao constavam nela. Eu ainda tinha um bocado de dinheiro do que ganhara apostando em Ask Gloria e no jogo de poquer em Washington. Mesmo sem mexer no dinheiro da pasta e apos ter pago os hoteis de Washington e de Scranton, alem do carro alugado, ainda tinha mais dinheiro na carteira do que jamais tivera. Quando pedira um quarto no Waldorf, nao me dei ao trabalho de perguntar o preco. Era uma experiencia agradavel.

Dera o endereco de Evelyn Coates em Washington como minha residencia. Agora, que estava inteiramente so, todas as minhas brincadeiras tinham de ser particulares.

Naqueles ultimos dias, tinha havido poucas oportunidades para rir. Washington fora, para mim, uma experiencia importante. Se, como tanta gente acreditava, a riqueza trazia felicidade, eu ainda era um principiante. Escolhera mal as companhias, no meu novo estado: Hale, com sua carreira truncada e o seu furtivo caso amoroso; Evelyn Coates, com sua armadura; e meu pobre irmao.

Na Europa, decidi, so ia procurar pessoas sem problemas.

A Europa sempre fora um lugar para onde os americanos ricos tinham fugido. Agora, eu me considerava um membro dessa classe. Deixaria os que me tinham precedido ensinar-me a doce tecnica da fuga. Procuraria rostos alegres.

Passei a noite de terca-feira sozinho no meu quarto, vendo televisao. Na ultima noite na America nao havia por que correr riscos desnecessarios.

Meu ultimo gesto foi por cento e cinquenta dolares num envelope com um bilhete para o bookmaker do St. Augustine: 'Desculpe te-lo feito esperar pelo dinheiro' e a minha assinatura. Haveria pelo menos um homem, nos Estados Unidos, que garantiria minha reputacao como homem honesto. Pus o envelope no correio quando sai do hotel.

Cheguei cedo ao aeroporto, de taxi. A pasta 007, com o dinheiro dentro, estava na mala azul grande, a da fechadura com o segredo. O dinheiro ficaria fora do meu alcance, no compartimento da bagagem, enquanto atravessassemos o Atlantico, mas era o jeito. Sabia que todos os passageiros eram revistados e a bagagem de mao aberta e examinada antes de embarcar, como precaucao contra sequestradores, e teria sido dificil tentar explicar a um guarda armado por que razao eu precisava levar mais de setenta mil dolares para uma excursao de tres semanas, cujo fim era esquiar.

Wales tampouco mentira sobre o excesso de peso. O homem do balcao nem sequer olhou para a balanca quando o carregador jogou as minhas duas malas em cima dela.

– Nada de esquis nem botas? – estranhou ele.

– Nao – respondi. – Vou compra-los na Europa.

– Compre Rossignols – aconselhou. – Ouvi dizer que sao os melhores. – Tinha se tornado entendido em equipamento de esqui no balcao de embarque do Aeroporto Kennedy.

Mostrei-lhe meu passaporte, ele verificou a lista de passageiros, deu-me um talao de embarque, e as formalidades terminaram.

– Boa viagem – desejou-me. – Quem dera eu ir com o senhor. – As outras pessoas na fila ja tinham, obviamente, comecado a celebrar e havia no ar um clima de ferias, com as pessoas se abracando, chamando-se umas as outras, e os esquis batendo no chao.

Cheguei cedo ao aeroporto, de modo que fui ate o restaurante comer um sanduiche e beber um chope. Nao almocara; tao cedo nao serviriam nada no aviao e eu estava faminto.

Enquanto comia e bebia, li o jornal da tarde. Um policial fora baleado no Harlem, naquela manha. Os Rangers tinham ganho o jogo, na noite anterior. Um juiz se manifestava contra os filmes pornograficos. Os diretores do jornal eram a favor de um impeachment contra o presidente. Falava-se que ele se demitiria. Homens que tinham ocupado altos cargos na Casa Branca estavam sendo mandados para a cadeia. O envelope que Evelyn Coates me dera para entregar em Roma estava na minha mala menor, agora sendo arrumada no porta-bagagens do aviao. Nao sabia se iria ajudar a por alguem na cadeia ou a evitar sua prisao. Fiquei pensando em minha visita a Washington.

Havia um telefone na parede, perto de onde eu estava sentado, e, de repente, senti vontade de falar com alguem, de ouvir uma voz familiar antes de deixar o pais. Levantei-me, liguei para interurbano e mais uma vez pedi o numero de Evelyn Coates.

De novo, nao houve resposta. Evelyn era uma mulher dificil de ser encontrada em casa. Desliguei e peguei de volta a ficha. Ia voltar para a mesa, onde me esperava o sanduiche meio comido, quando estaquei. Lembrei-me de ter passado de carro diante do St. Augustine e de quase ter parado. Desta vez, nao haveria perigo. Dentro de quarenta minutos, estaria em pleno espaco internacional. Enfiei novamente a ficha e disquei o numero do hotel.

Como de costume, o telefone tocou e tocou antes que eu ouvisse a voz de Clara.

– Hotel St. Augustine – atendeu ela, pondo nessas tres palavras toda a raiva e irritacao que sentia pelo mundo.

– Gostaria de falar com o Sr. Drusack, por favor – disse eu.

– Sr. Grimes! – exclamou ela, num grito. Tinha reconhecido minha voz.

– Gostaria de falar com o Sr. Drusack, por favor – repeti, fingindo nao a ter ouvido ou, pelo menos, nao a ter entendido.

– Sr. Grimes – volveu ela -, onde e que o senhor esta?

– Por favor, senhorita – insisti -, gostaria de falar com o Sr. Drusack. Ele esta no hotel?

– Esta no hospital, Sr. Grimes – respondeu ele. – Dois homens seguiram o carro dele e lhe bateram na cabeca com a coronha dos revolveres. Ele esta em coma. Parece que com fratura do cranio e…

Desliguei e voltei para minha mesa, onde acabei o chope e o sanduiche.

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