haver muitos outros. E a presenca de um smoking tambem poderia querer dizer que seu dono pretendia ir a Londres ou a Paris, ou a alguma outra cidade onde precisasse vestir-se a rigor. Afinal de contas, a Europa e muito grande.

Pensei em telefonar para o escritorio do clube de esqui, em Nova York, explicando que tinha havido uma confusao de malas no aeroporto de Zurique e pedindo uma copia da lista com os nomes das pessoas que tinham viajado comigo, bem como os seus enderecos. Cheguei a pensar em mandar cartas a cada um dos trezentos e poucos passageiros, contando a troca de malas e pedindo a cada um que me dissesse se, por acaso, nao perdera uma mala, para que eu pudesse devolver ao seu legitimo dono a que estava em meu poder. Mas, um minuto ou dois apos ter pensado nesse plano, percebi que nao adiantaria. Depois daqueles dois dias infrutiferos, tinha certeza de que a pessoa que estivesse com minha mala nao estava querendo devolve-la.

Procurando fazer uma ideia de como o ladrao (que era como eu agora chamava o homem) seria, experimentei algumas de suas roupas. Vesti uma das camisas. No colarinho, assentava-me bem. Ja as mangas estavam uns dois ou tres centimetros curtas. Que tal eu andar com uma fita metrica e inventar uma razao plausivel para medir os colarinhos e os bracos de todos os americanos que passavam o inverno na Europa? Na mala, havia tambem dois pares de bons sapatos, uns marrons e outros pretos, fabricados por Whitehouse & Hardy, com lojas em quase todas as grandes cidades dos Estados Unidos. Experimentei-os.

Cabiam-me perfeitamente. Pelo menos, meus pes ficariam secos nesse inverno.

O paleto quadriculado tambem me assentou bastante bem – um pouco largo, mas nao muito. Seu dono devia ser jovem, visto nao ter barriga… mas, afinal de contas, o homem esquiava e devia estar em boa forma fisica, qualquer que fosse a sua idade. A calca tambem me ficava um pouco curta. Isso significava que o dono era um pouco mais baixo do que eu. Pelo menos, nao precisava perder meu tempo procurando gigantes, homens gordos ou anoes.

Esperava que o ladrao fosse tao economico quanto eu pretendia ser e usasse as roupas que estavam em minha mala, embora nao lhe ficassem cem por cento, como me acontecia com as dele. Tinha certeza de que, se visse passar um terno meu, eu o reconheceria. Compreendi que me estava atendo a possibilidades muito tenues… com setenta mil dolares no bolso, naquela hora ele provavelmente estaria tirando as medidas nos melhores alfaiates da Europa. Senti a mesma especie de dor que imaginava que um marido poderia ter se soubesse que, naquele exato momento, sua bela esposa estava na cama com outro homem. Com angustia, percebi que me havia casado com um certo numero de notas de cem dolares. Nao era racional. Afinal de contas, eu estava mais rico do que fora havia apenas duas semanas. Mas que se podia fazer? Era dificil ser racional.

Entrementes, eu tinha cerca de cinco mil dolares em dinheiro comigo. Tinha cinco mil dolares de tempo para encontrar um homem cujo pescoco medisse quarenta e dois centimetros de diametro, com bracos de oitenta e cinco centimetros, sapatos tamanho 10 e nenhuma intencao de devolver setenta mil dolares que lhe tinham caido, quase literalmente, do ceu.

Enquanto refazia cuidadosamente a mala, colocando o paleto esporte em cima, conforme o encontrara, pensei: 'Bem, pelo menos resta um consolo… nao vou precisar gastar dinheiro em roupas para substituir as que perdi. O Senhor me deu e o Senhor me tirou'. Nao sei o que teria feito se a mala estivesse cheia de roupas de mulher.

Paguei a conta do hotel, peguei um taxi para o Behnhof e comprei uma passagem de primeira classe para St. Moritz. As unicas pessoas com quem eu tinha falado no aviao eram o casal que ia esquiar no Corvatch, em St. Moritz. Nao me haviam dito seus nomes ou onde iam hospedar-se. Sabia que as chances de eles me poderem fornecer qualquer informacao util, se eu os encontrasse, eram quase infimas. Mas tinha de comecar por algum lugar. Zurique ja nao tinha quaisquer encantos para mim. Chovera nos dois dias que eu passara la.

Em Chur, a uma hora e meia de Zurique, tive de baldear para a linha de bitola estreita que levava ao Engadine. Percorri o carro de primeira classe ate descobrir um compartimento vazio. Entrei e pus o meu sobretudo e as duas malas no porta-bagagens, sobre os assentos.

A atmosfera naquele trem era muito diferente da que reinara no expresso de Zurique, cheio de cidadaos serios e solidos, lendo as paginas financeiras do Zuricber Zeitung. Embarcando nas carruagens de brinquedo, en route para as estacoes de esqui, viam-se grupos de jovens, muitos ja com as roupas de esquiar, e mulheres bonitas e bem vestidas, com caros casacos de pele e acompanhantes endinheirados. Havia no ar um clima de ferias que eu nao estava disposto a compartilhar. Viera a caca, queria pensar e esperava que ninguem entrasse no compartimento e me perturbasse. Para desencorajar companhia, fechei a porta corredica. Mas, pouco antes de o trem partir, um homem abriu a porta e perguntou, em ingles:

– Desculpe, mas esses lugares estao ocupados?

– Acho que nao – respondi, o mais rispidamente possivel.

– Meu bem – disse o homem para alguem no corredor. – Aqui. – Uma loura vistosa e consideravelmente mais jovem do que o homem, vestindo um casaco de pele de leopardo e um chapeu igual, entrou no compartimento. Lamentei brevemente todos os animais ameacados de extincao. A loura carregava um custoso porta-joias de couro e tresandava a perfume almiscarado. Um enorme anel de brilhante quase lhe escondia a alianca. Se o mundo fosse mais bem organizado, haveria um motim de carregadores e de outros trabalhadores num raio de dez quadras a partir da estacao. Mas isso era impensavel na Suica.

O homem nao tinha bagagem, levava apenas algumas revistas e um International Herald Tribune debaixo do braco. Jogou as revistas e o jornal no assento em frente ao meu e ajudou a loura a tirar o casaco. Ao procurar coloca-lo no porta-bagagens, a beira do casaco rocou-me o rosto, fazendo-me cocegas e sufocando-me numa onda de perfume.

– Oh! – exclamou a loura. – Desculpe.

Sorri sombriamente, fazendo um esforco para nao cocar o rosto.

– E um prazer – menti.

Ela recompensou-me com um sorriso. Nao devia ter mais de vinte e oito anos e tinha todas as razoes para achar que um sorriso seu era realmente uma recompensa. Eu tinha certeza de que ela nao era a primeira mulher daquele homem, talvez nem mesmo a segunda. Antipatizei com ela logo de saida.

O homem tirou o casaco de pele de carneiro que estava usando e o chapeu tiroles, verde com uma peninha, e atirou-os para cima do porta-bagagens. Em volta do pescoco, tinha uma echarpe de foulard de seda, que nao tirou. Sentou-se e apanhou uma caixa de charutos.

– Bill – queixou-se a mulher.

– Estou de ferias, meu bem. Deixe-me fumar sossegado. – E abriu a caixa de charutos.

– Espero que o senhor nao se incomode que meu marido fume – disse a loura.

– Em absoluto. – Pelo menos, abafaria o horrivel perfume.

O homem estendeu-me a caixa de charutos.

– Posso oferecer-lhe um?

– Obrigado. Nao fumo – menti.

Ele apanhou uma pequena tesoura e cortou a ponta de um charuto. Tinha maos grossas, brutais, manicuradas, que combinavam com seu rosto avermelhado, de queixo duro e olhos frios e azuis. Eu nao gostaria de trabalhar com um homem assim, ou de ser seu filho. Calculei que tivesse bem mais de quarenta anos.

– Puros havanas – comentou ele. – Quase impossiveis de encontrar na nossa terra. Os suicos, gracas a Deus, sao neutros em relacao a Castro. – Usou um isqueiro de ouro para acender o charuto e reclinou-se no assento, fumando confortavelmente.

Olhei pela janela para o campo coberto de neve. Tambem tinha pensado que ia gozar umas ferias. Pela primeira vez, passou-me pela cabeca que talvez devesse saltar na proxima estacao e voltar para casa. Mas para casa, onde? Pensei em Drusack, que nao estava indo para St. Moritz.

O trem entrou num tunel e dentro do compartimento ficou escuro como breu. Desejei que o tunel nunca mais acabasse. Sentindo pena de mim mesmo, lembrei-me das noites no St. Augustine e pensei: a escuridao e o meu elemento.

Pouco depois de sairmos do tunel, estavamos em pleno sol. Tinhamos saido da nuvem cinzenta que pairava sobre a planicie suica. O sol era como que uma afronta a minha sensibilidade. O homem agora estava cochilando, a cabeca jogada para tras, o charuto apagado no cinzeiro. A mulher lia os quadrinhos do Herald Tribune, uma expressao de extase no rosto. Parecia uma boba, labios apertados, olhos infantis sob o chapeu de leopardo. Era isso o que eu pensara que o dinheiro me compraria?

Ela percebeu que eu a estava observando e olhou para mim, rindo coquetemente.

– Sou tarada por historias em quadrinhos – falou. – Tenho sempre medo de que o Rip Kirby seja morto.

Sorri sem vontade e olhei para o solitario no dedo dela, ganho, sem duvida, em honesto matrimonio. Ela olhou para mim de esguelha. Apostei como nunca olhava para ninguem de frente.

– Sera que ja nao o vi antes? – perguntou.

– Talvez – respondi.

– O senhor, nao viajou no aviao de quarta-feira a noite? No aviao do clube?

– Viajei.

– Sabia que o conhecia de algum lugar. Ja esteve em Sun Valley?

– Nao. Nunca estive la.

– Essa e a grande vantagem do esqui – falou ela. – A gente encontra sempre as mesmas pessoas.

O homem resmungou, despertado pelo som de nossas vozes. Acordando, seus olhos encararam-me com hostilidade. Tive a impressao de que a hostilidade era a sua condicao natural e basica, e de que o tinha surpreendido antes que ele tivesse tido tempo de afivelar a mascara que usava em sociedade.

– Bill – disse a mulher -, este senhor veio no aviao conosco. – Pela maneira com que ela o disse, parecia que tinha sido um enorme prazer para todos nos.

– Ah, sim? – perguntou ele.

– Adoro viajar com americanos – continuou a mulher. – Por causa da lingua e de tudo o mais. Os europeus fazem a gente se sentir tao burra! Acho que deviamos comemorar. – Abriu o estojo de joias, que pousara no assento a seu lado, e dele tirou uma elegante garrafinha de prata. Havia tambem tres pequenos copos de metal, um dentro do outro, que ela distribuiu entre nos. – Espero que o senhor goste do conhaque – disse ela, enchendo cuidadosamente os copos. Minha mao estava tremendo e um pouco de conhaque derramou sobre ela.

– Oh, desculpe – disse a loura.

– Nao foi nada – retruquei. Minha mao estava tremendo porque o homem tirara a echarpe de foulard e, pela primeira vez, eu lhe vira a gravata: vermelho-escura e de la. Ou era uma gravata que eu tinha posto na mala, ou outra exatamente igual. Cruzou as pernas e olhei para os seus sapatos. Nao eram novos, mas eram iguais a um par que eu tinha na mala perdida.

– O primeiro brinde e para aquele que primeiro partir uma perna, este ano – disse o homem, erguendo seu copo de metal e rindo brutamente. Eu tinha certeza de que ele nunca partira nada. Era o tipo do homem que nunca estivera doente e que nao carregava nada alem de aspirina, quando viajava.

Tomei meu conhaque de um so gole. Estava mesmo precisando; e gostei, quando a loura voltou a encher meu copo. Ergui-o galantemente a saude dela e forcei um sorriso, esperando que o trem descarrilhasse e ela e o marido ficassem esmagados, de modo a que eu pudesse revista-los, e a bagagem, tranquilamente.

– Nao ha duvida de que voces sabem viajar – disse eu, num tom de exagerada admiracao.

– Estar sempre preparado, em terra estrangeira – sentenciou o homem. – Essa e a nossa divisa. – Estendeu-me a mao. – Meu nome e Bill. Bill Sloane. E a mocinha ai e Flora.

Apertei a mao dele e disse-lhe meu nome. Sua mao era dura e fria. A 'mocinha' (que devia ter mais de vinte e cinco) sorriu coquetemente e serviu-me um pouco mais de conhaque.

Quando chegamos a St. Moritz, ja pareciamos velhos amigos. Fiquei sabendo que moravam em Greenwich, Connecticut; que o Sr. Sloane era bamba no golfe, empreiteiro e um self-made man; que, como eu tinha imaginado, Flora nao era a sua primeira mulher; que ele tinha um filho estudando em Deerfield, o qual, gracas a Deus, nao usava o cabelo comprido; que votara em Nixon e fora por duas vezes a Casa Branca; que o escandalo Watergate estaria esquecido dali a um mes e os democratas se arrependeriam de te-lo trazido a baila; que aquela era a terceira vez que eles iam a St. Moritz, que tinham ficado dois dias em Zurique para que Flora pudesse fazer umas compras, e que iam hospedar-se no Palace Hotel.

– Onde voce vai ficar, Doug? – perguntou Sloane.

– No Palace – respondi, sem hesitar. Estava muito acima das minhas atuais posses, mas eu nao ia perder de vista os meus novos amigos. – Ouvi dizer que e otimo.

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