Quando chegamos a St.-Moritz, fiz questao de esperar com eles ate que as suas malas fossem desembarcadas do bagageiro. A expressao deles nao mudou, quando tirei a mala azul do porta- bagagens.

– Sabe que sua mala esta aberta? – perguntou Sloane.

– O fecho esta quebrado – respondi.

– E melhor mandar conserta-lo – disse ele. – St. Moritz esta cheia de italianos. – Aquele interesse poderia significar algo. Ou nada. Os dois podiam ser os melhores atores do mundo.

Entre os dois, tinham oito malas, todas novas, nenhuma igual a minha. Isso tambem podia nao significar nada. Tivemos que chamar um taxi extra para carregar a bagagem e o carro seguiu-nos, ladeira acima, atraves das ruas nevadas e movimentadas da cidade, ate o hotel.

Este tinha um aroma sutil e indefinivel. Um aroma que provinha de dinheiro, dinheiro calmo, sem sobressaltos. O hall era como que uma extensao da caixa-forte do banco, em Nova York. Os hospedes eram tratados com uma especie de cautelosa reverencia, como se fossem icones de grande valor, frageis e dignos de adoracao. Tive a sensacao de que ate mesmo as criancas, lindamente vestidas e acompanhadas de governantas inglesas, que caminhavam comportadamente por sobre os suaves tapetes, sabiam que eu estava fora do meu ambiente.

Todo mundo na recepcao apertou a mao do Sr. Sloane e fez uma pequena reverencia a sua digna esposa. Via-se que as gorjetas tinham sido principescas, nos anos anteriores. Poderia um homem daqueles, capaz de sustentar uma mulher como Flora e de pagar um hotel como o Palace, ser tambem capaz de se assenhorear de setenta mil dolares alheios? E de, ainda por cima, usar os sapatos de outro? Provavelmente, a resposta era sim. Afinal de contas, Sloane me confessara ter-se feito por si mesmo.

Quando eu disse ao homem da recepcao que nao tinha reserva, o seu rosto assumiu logo aquela expressao de 'nao-ha-lugar' dos hoteleiros em plena temporada. Percebera logo o meu disfarce.

– Sinto muito – foi dizendo -, mas…

– E meu amigo – atalhou Sloane. – De um jeito de arrumar um quarto para ele.

O recepcionista fingiu que verificava a lista de reservas e acabou dizendo:

– Bem, ha um quarto de casal. Talvez…

– Esta otimo – falei.

– Quanto tempo o senhor pensa ficar, Sr. Grimes? – perguntou o homem.

Hesitei. Quanto tempo cinco mil dolares durariam num lugar daqueles?

– Uma semana – respondi. Passaria sem suco de laranja de manha.

Subimos juntos no elevador. O recepcionista dera-me um quarto ao lado do dos Sloane. Teria sido conveniente, se as paredes fossem mais finas ou eu entendesse de eletronica.

Meu quarto era grande, com uma enorme cama de casal coberta de cetim rosa e uma vista espetacular do lago e das montanhas, embelezadas mais ainda pelos ultimos raios do sol poente. Noutras circunstancias, eu teria ficado maravilhado, mas na atual situacao a natureza me parecia cara e insensivel. Fechei as venezianas e deitei-me inteiramente vestido sobre a cama, o cetim farfalhando voluptuosamente sob meu peso. Sentia ainda o cheiro do perfume de Flora Sloane. Tentei pensar em alguma maneira pela qual eu pudesse descobrir, rapida e seguramente, se Sloane era o meu homem. Minha mente parecia vazia. Os dois dias em Zurique tinham-me deixado exausto. Sentia um resfriado se aproximando. Nao podia pensar em nada, senao aguentar firme e ficar a espreita. Mas, se eu descobrisse que ele estava usando minha gravata, que estava andando com meus sapatos, o que faria? Minha cabeca comecou a doer. Levantei-me da cama, tirei duas aspirinas do estojo de barba e tomei-as.

Depois disso, mergulhei num sono agitado, entrecortado por sonhos nos quais havia um homem que aparecia e desaparecia, e tanto podia ser Sloane quanto Drusack, balancando um molho de chaves.

O telefone tocou, despertando-me. Era Flora Sloane, convidando-me para jantar. Aceitei, fingindo entusiasmo. Nao precisava vestir-me para isso, disse ela; iamos jantar na cidade. Bill tinha se esquecido de por na mala o seu smoking e mandara-o buscar nos Estados Unidos, mas ainda nao tinha chegado. Falei que tambem preferia nao ter de me vestir a rigor, desliguei e tomei um banho frio.

Reunimo-nos para drinques no bar do hotel. Sloane vestia um terno cinza-escuro, que nao me pertencia. Trocara de sapatos. A mesa, havia outro casal que viajara no nosso aviao e que tambem era de Greenwich. Tinham esquiado nesse dia e a mulher ja estava coxeando.

– Nao e maravilhoso? – disse ela. – Nas proximas duas semanas, vou poder passar o tempo deitada ao sol, no Corveglia Club.

– Antes de nos casarmos – atalhou o marido – ela sempre dizia que adorava esquiar.

– Isso foi antes de nos casarmos – disse a mulher.

Sloane mandou vir uma garrafa de champanha. Foi consumida rapidamente e o outro homem mandou vir uma segunda garrafa. Eu tinha de sair de St. Moritz antes que me tocasse a vez. Naquela atmosfera, era facil amar os pobres.

Fomos jantar num restaurante instalado num chale em estilo rustico e bebemos um bocado mais de champanha. Os precos no cardapio e que nao eram rusticos. Durante o jantar, fiquei sabendo mais do que me poderia interessar a respeito de Greenwich: quem fora expulso do clube de golfe, que mulher tinha feito um aborto com qual ginecologista, quanto as obras na casa dos Powell tinham custado, quem estava liderando a brava luta para evitar que as criancas negras viajassem nos onibus escolares com as brancas. Mesmo que me tivessem garantido que ate o fim da semana eu teria de volta os setenta mil dolares, duvidava que pudesse suportar as refeicoes necessarias para isso.

Depois do jantar, foi ainda pior. Quando voltamos ao hotel, os dois homens resolveram jogar bridge e Flora pediu-me que a levasse para dancar no Kings Club, no andar terreo. A dama que mancava veio tambem. Mal nos sentamos a uma das mesas, Flora mandou vir mais champanha, desta vez para por na minha conta.

Jamais gostei de dancar, e Flora era uma dessas mulheres que se agarram ao par como querendo impedir que ele fuja. Fazia calor no salao, o barulho era infernal, meu blazer era pesado e estava demasiado justo nas axilas, e o perfume de Flora era de entontecer qualquer um. Ainda por cima, ela trauteava amorosamente no meu ouvido, enquanto dancavamos.

– Que sorte ter encontrado voce! – sussurrou ela. – Ninguem consegue arrastar Bill para uma pista de danca. E aposto como voce tambem esquia bem. Move-se como um otimo esquiador. – A mente da Sra. Sloane parecia gravitar em torno do sexo. – Quer esquiar comigo amanha?

– Adoraria! – menti. Se pudesse ter escolhido uma lista das pessoas suspeitas de terem roubado minha mala, os Sloane figurariam bem no finzinho.

Pouco depois da meia-noite, consumidas duas garrafas de champanha, consegui finalmente por fim a noitada. Assinei a conta e acompanhei as duas damas ate onde os respectivos maridos jogavam bridge. Sloane estava perdendo. Eu nao sabia se devia ficar alegre ou triste. Se o dinheiro fosse meu, teria chorado. Se fosse dele. teria vibrado. Alem do amigo de Greenwich, havia ainda um homem bem-parecido, dos seus cinquenta anos, e uma velha dama, cheia de joias, com um sotaque espanholado e uma voz de corvo. O beautiful people do international set.

Enquanto eu olhava o jogo, o homem de cabelos grisalhos e bem-parecido fez um pequeno slam.

– Fabian – queixou-se Sloane -, todos os anos acabo passando-lhe um cheque.

O homem a quem Sloane chamara Fabian sorriu. Tinha um sorriso encantador, quase feminino, e pequenas rugas de riso em volta dos olhos escuros e grandes.

– Devo confessar – disse ele – que estou com sorte. – Sua voz era suave e um pouco rouca, com um sotaque estranho. Pela maneira de falar, nao se podia dizer qual a sua nacionalidade.

– Com sorte! – repetiu Sloane. Via-se que era mau perdedor.

– Vou me deitar – anunciou Flora. – Quero esquiar logo de manha.

– Subo daqui a pouco – disse Sloane, embaralhando as cartas como se as estivesse preparando para usar a guisa de armas…

Acompanhei Flora ate a porta do seu quarto.

– Nao e bom -: comentou ela – os nossos quartos estarem ao lado um do outro? – Deu-me um beijo de boa-noite, riu e entrou.

Nao estava com sono. Sentei-me na cama e comecei a ler. Cerca de meia hora mais tarde, ouvi passos e a porta do quarto dos Sloane abrir e fechar. Seguiram-se uns murmurios que nao consegui distinguir atraves da parede e, apos uns minutos, silencio.

Esperei mais quinze minutos para dar tempo a que o casal adormecesse e depois abri, sem fazer barulho, a porta do meu quarto. Ao longo do corredor, pares de sapatos estavam alinhados diante das portas dos quartos, mocassins masculinos e femininos, sapatos dourados, de verniz, botas de esqui, todos colocados dois a dois, casais a espera de embarcarem na arca de Noe. Mas diante da porta dos Sloane, havia apenas as elegantes botas de couro que Flora usara no trem. Fosse qual fosse o motivo seu marido nao pusera de fora os sapatos marrons de sola de borracha, e presumivelmente numero 10, para serem engraxados. Fechei a porta sem fazer barulho, a fim de meditar sobre o significado daquilo.

CAPITULO X

– Estou preocupada com o meu marido – disse-me Flora Sloane. Estavamos tomando um drinque antes do almoco, sentados ao sol no terraco do Corvegiia Club, entre armadores gregos, industriais milaneses, pessoas que costumavam ser fotografadas a beira de piscinas em Acapulco e damas de todas as nacionalidades ansiosas por pegar um deles. Flora Sloane, que obviamente, como antes se dizia, 'nao tomara cha em pequena', e que quando entusiasmada descambava para um linguajar e uma pronuncia proprios de garconete de botequim de Nova Jersey frequentado quase que exclusivamente por choferes de caminhao, sentia-se completamente a vontade naquele ambiente e aceitava todas as atencoes e deferencias como se fosse uma rainha. Eu, ao contrario, sentia-me como se tivesse sido jogado atras das linhas inimigas.

Ser socio temporario do clube custara-me cento e vinte francos por duas semanas, mas eu tinha que ir aonde os Sloane fossem. Nao que Sloane fosse a muitos lugares. De manha, segundo Flora, ficava horas telefonando para o seu escritorio em Nova York e a tarde e a noite jogava bridge.

– Nem sequer vai estar bronzeado quando voltarmos a Greenwich! – queixou-se ela. – Ninguem vai acreditar que ele esteve nos Alpes.

Entrementes, eu tinha a honra de esquiar com Flora Sloane e pagar-lhe o almoco. Era uma esquiadora bastante razoavel, mas dessas que dao gritinhos quando atingem um lugar mais ingreme e constantemente se queixam das botas. Eu estava a toda hora de joelhos na neve, soltando os atacadores das botas, para logo depois aperta-las de novo. Recusara-me a aparecer na calca vermelha e no anoraque amarelo-limao que encontrara na mala e comprei um conjunto de esqui azul-marinho que me custou uma nota.

De noite, havia a inevitavel danca suarenta e o nao menos inevitavel champanha. Alem disso, a Sra. Sloane estava ficando cada vez mais apaixonada e tinha o desagradavel habito de enfiar a lingua na minha orelha enquanto dancavamos. Eu queria entrar no quarto dos Sloane e revista-lo, mas nao daquele jeito. Havia varias razoes para a minha frieza, sendo a principal a total ausencia de reacao a qualquer estimulo sexual desde o momento em que percebi que os meus setenta mil dolares tinham desaparecido. Dinheiro queria dizer poder, isso eu sabia. Nao sabia era que a sua falta redundasse em impotencia. Qualquer tentativa de desempenho sexual da minha parte, tinha a certeza, resultaria grotescamente inadequada. As provocacoes de Flora Sloane ja eram demais. Sua zombaria seria catastrofica. Eu previa anos de tratamento psiquiatrico.

Meus esforcos como detetive tinham sido pateticamente inuteis. Batera varias vezes a porta dos Sloane com um pretexto ou outro, na esperanca de ser convidado a entrar, de modo a poder pelo menos olhar sub-repticiamente o quarto deles, mas, fosse a mulher ou o marido que atendessem, todas as conversas tinham lugar na soleira, com a porta apenas entreaberta.

Eu abria a minha porta todas as noites, quando o hotel dormia, mas nunca tinha visto os sapatos marrons no corredor. Comecava a sentir que fora vitima de alucinacoes no compartimento do trem – que Sloane nunca usara sapatos marrons com solas de borracha e nunca ostentara uma gravata de la vermelha. Trouxera a baila casos de confusao de bagagem nos aeroportos, mas os Sloane nao haviam mostrado interesse. Ficaria ate o fim da semana, esperando que algo acontecesse, e depois iria embora, se bem que nao soubesse para onde. Talvez para algum pais da cortina

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