para fora uma folha de papel dobrado, cor-de-rosa e perfumado, escrito com letra de mulher.

Minhas maos comecaram a tremer. Deixei-me cair na cama e comecei a ler. Nao havia endereco ou data.

'Amor', assim comecava a carta. 'Espero que voce nao fique muito desapontado, mas nao vou poder ir a St. Moritz, este ano…'

Senti um tremor perpassar-me o corpo todo, como se uma avalanche se houvesse precipitado do alto de um dos picos circundantes e sacudido as fundacoes da cidade.

'O pobre Jock caiu do seu fiel corcel ao regressar a casa apos uma cacada, fraturou o quadril e desde entao, faz ja tres dias, tem estado em agonia. O feiticeiro local, cuja clientela e toda de antes da Guerra da Crimeia, limitou-se a dar gritinhos alarmados quando lhe pedimos um diagnostico, de modo que levamos Jock para Londres, onde os cirurgioes estao debatendo se devem ou nao operar e, entrementes, o pobrezinho geme sem parar no seu leito de dor. Naturalmente, sua dedicada esposa nao pode voar para os Alpes enquanto o drama esta tao tremendamente fresco. De modo que vivo correndo para o hospital, levando flores e gim, acalmando a testa febril e garantindo-lhe que ele vai poder cacar no ano que vem, o que, como voce sabe, e a sua principal e praticamente unica ocupacao na vida.

'Mas nem tudo esta perdido. Prometi visitar a minha velha tia Amy em Florenca, aonde devo chegar no dia XIV de fevereiro. Ate la, a situacao deve ter melhorado e tenho certeza de que o bom Jock vai insistir que eu va. A tia Amy esta com a casa cheia de hospedes, de modo que vou ficar no Excelsior, o que e ainda melhor. Espero ver o seu rosto sorridente esperando por mim no bar. Ansiosamente, L.'

Reli a carta, para ter uma impressao mais clara, e nao muito lisonjeira, da mulher que a escrevera. Considerava uma afetacao de sua parte nao por a data na carta, escrever XIV em romanos, em vez de simplesmente 14, e assinar apenas com a inicial. Tentei imaginar como ela seria. Uma dessas frias beldades inglesas, de trinta a quarenta anos, com ar importante e uma atitude inspirada em grande parte nas obras de Sir Noel Coward e Michael Arlen. Mas, fosse qual fosse a sua aparencia e a sua atitude, eu estaria no Hotel Excelsior, em Florenca, a espera dela, junto com o seu amante, no dia 14 de fevereiro… Dia de Sao Valentim, dia dos namorados e de um famoso massacre.

A ideia de ter podido estar lado a lado com o adultero no salao de jantar do Palace Hotel ou nas montanhas de St.Moritz torturou-me, e cheguei a pensar em voltar la. Era horrivel pensar que o amante da Sra. L. poderia estar mais uma semana em St.Moritz, calmamente queimando o meu dinheiro. Mas, se antes nao o descobrira, nao havia razao para crer que o pudesse descobrir agora. A unica pista que eu tinha, pela carta, era a de que provavelmente ele nao era casado ou, pelo menos, viera a Europa sem a mulher, que tinha uma certa instrucao, pois devia saber ler algarismos romanos, e que a sua companheira de pecado esperava dele um rosto sorridente. Todas essas informacoes nao tinham valor pratico no momento. Eu teria de ser paciente e esperar mais sete dias.

Despedi-me de Davos, com suas legioes de fantasmas expectorantes, feliz por conseguir sair das regioes da neve. O trem de Zurique a Florenca passava por Milao e resolvi desembarcar e pernoitar nesta ultima cidade, aproveitando para ir ver A ultima ceia perder tristemente as cores, no muro de pedra da igreja em ruinas. Leonardo da Vinci ajudou-me a achar que havia uma saida possivel para a comedia. Milao estava coberta de fog e eu me deixei embeber em cicatrizante melancolia.

Tive apenas um momento de preocupacao, quando fui seguido, ao longo da arcada que ha bem no centro de Milao, por um rapaz moreno de sobretudo comprido que esperava a porta do cafe onde eu entrara para tomar um espresso. Sentira-me em seguranca, embora nao a vontade, na Suica, mas em Milao nao pude deixar de pensar no que tinha lido sobre as ligacoes italianas com o crime organizado, na America. Mandei vir outro espresso e tomei-o bem devagar, mas o homem nao se mexeu. Eu nao podia ficar toda a vida no cafe, de modo que paguei e sai, caminhando rapidamente.

O homem do sobretudo comprido atravessou correndo a arcada e segurou-me o cotovelo. Era zarolho, o que o fazia parecer extremamente ameacador, e sua mao no meu cotovelo era como uma garra de aco.

– Ei, chefe – disse ele, caminhando a meu lado. – Qual a pressa?

– Estou atrasado para um encontro. – Procurei livrar-me dele, mas foi inutil.

Enfiou a outra mao no bolso e temi o pior.

– Quer comprar uma joia verdadeira? – perguntou. – Uma pechincha? – Soltou-me e puxou algo que tilintava, embrulhado em papel de seda. – Lindo presente para uma dama. – Tirou o papel e vi que era uma corrente de ouro.

– Nao tenho dama – respondi, recomecando a andar.

– Linda joia – insistiu ele. – O senhor pagaria duas, tres vezes mais, na America.

– Desculpe, mas nao adianta – atalhei.

O homem suspirou e eu deixei-o embrulhando a corrente e guardando-a de volta no bolso.

Enquanto me afastava, pensava que qualquer esperanca que eu pudesse ter tido de passar despercebido entre os povos da Europa era ridicula. Aonde quer que eu fosse, seria apontado, por quem quer que tivesse algum interesse em mim, como americano. Pensei em deixar crescer a barba.

No dia seguinte, sentindo que talvez nunca mais tivesse essa oportunidade, tomei o rapido para Veneza, cidade que, acreditava, e nao me enganava, seria mais triste que Milao naquela epoca do ano. Os canais brumosos, o lamento das buzinas dos barcos, a agua escura e o musgo, a luz cinzenta do inverno adriatico, contribuiram para restaurar o meu sentido de dignidade e apagar a lembranca da atletica frivolidade de St.Moritz. Li, com satisfacao, que Veneza estava afundando no mar. Hospedei-me numa pensao barata e fiquei visitando igrejas, bebendo um vinho branco e leve, chamado soave, em cafes adjacentes a Piazza San Marco, e observando os italianos, ocupacao divertida e agradavel. Evitei o Harry's Bar, que eu temia fosse frequentado por americanos, mesmo fora da estacao. So havia um americano que me interessava e eu nao tinha nenhuma razao para crer que ele estivesse em Veneza nessa semana.

O pequeno passeio me fizera muito bem. Meus nervos, que na Suica tinham ficado arrasados, agora pareciam de novo fortes. Cheguei ao Hotel Excelsior, em Florenca, na noite de 13 de fevereiro, confiante em que me sairia bem quando chegasse o momento do confronto.

Apos um jantar excelente, caminhei pelas ruas de Florenca, parando um momento diante da monumental copia da estatua do David de Michelangelo, na Piazza delia Signoria, que me fez meditar sobre a natureza do heroismo e a derrota da vileza. Florenca, com sua historia de intrigas e vendettas, seus Guelfos e Gibelinos, era a cidade adequada para enfrentar o meu inimigo.

Naturalmente, nao dormi bem e acordei antes que a luz da aurora se refletisse no Amo, abaixo da minha janela.

Antes mesmo de tomar o cafe, interroguei o recepcionista sobre os horarios dos voos Londres-Milao e das chegadas dos trens da linha Milao-Florenca. Pelos meus calculos, a dama chegaria as cinco e trinta e cinco.

A essa hora, eu estaria no hall do hotel, estrategicamente colocado para poder observar qualquer hospede do sexo feminino que se dirigisse a recepcao para assinar a ficha. E qualquer homem um pouco mais baixo do que eu, que pudesse acompanha-la ou levantar-se para dar-lhe as boas-vindas.

Passei o dia bebendo cafe bem forte, mas nada de alcool, nem mesmo uma cerveja. Por dever para com o meu papel de turista, percorri a Galleria degli Uffizi, mas a gloriosa mostra de arte florentina nao me impressionou fortemente. Teria de voltar numa outra oportunidade.

Fiz apenas uma compra, numa loja de souvenirs: um abridor de cartas, em forma de punhal, com um cabo de prata entalhado. Recusei-me a analisar os motivos exatos da compra, fingindo ter apenas gostado inocentemente do abridor ao ve-lo na vitrina.

Ao fim da tarde, comprei o Rome Daily American e instalei-me numa das adornadas poltronas do hall do hotel, nao demasiado perto da porta e da recepcao, mas de modo a poder ver claramente a area critica. Estava usando minha propria roupa. Nao queria afugentar ninguem, usando o paleto quadriculado ou as camisas de listras berrantes que havia na mala.

As seis horas, ja tinha lido o jornal duas vezes de fio a pavio. Os unicos novos hospedes que haviam chegado eram uma familia de americanos, pai gordo e barulhento, mae cansada e com sapatos confortaveis, tres criancas magrelas e palidas, vestindo japonas identicas. Tinham vindo de Roma de carro, ouvi-os dizer; as estradas estavam cobertas de gelo. Consegui controlar-me para nao pedir ao recepcionista que indagasse se o trem de Milao estava atrasado.

Estava lendo a coluna social, que antes me escapara, e me cientificando de que alguem de quem eu nunca ouvira falar tinha dado uma festa para nao sei quem, quando uma mulher loura, de seus trinta anos, entrou pela porta seguida por uma quantidade de malas caras. Fiz um esforco para controlar minha respiracao. A mulher, notei automaticamente, era bonita, tinha um nariz longo e aristocratico, uma boca fina e bem pintada, e usava um casaco marrom comprido, que mesmo eu, que entendia pouco de roupas, via que estava impecavelmente cortado. Dirigiu-se a passos largos para o balcao da recepcao com o ar de quem esta acostumada a hoteis de cinco estreias, mas, quando ia dizer seu nome ao funcionario, duas das criancas americanas que tinham ficado no hall romperam numa acalorada discussao sobre quem tomaria banho primeiro, de modo que nao pude ouvir o seu nome. 'Se alguma vez eu tiver filhos', pensei, 'nunca viajarei com eles!'

Fiquei grudado na minha poltrona, enquanto a mulher assinava a ficha e entregava seu passaporte, cuja cor nao consegui ver. Depois, em vez de rumar para os elevadores, ela foi diretamente para o bar. Apalpei o dolar de prata que levava no bolso, levantei-me e dirigi-me tambem para o bar. Mas, quando eu ia entrar, ela saiu. Recuei para deixa-la passar e inclinei ligeiramente a cabeca numa saudacao, mas ela nem me ligou, nem eu pude decifrar a expressao em seu rosto.

Sentei-me a um canto e pedi um uisque com soda. O bar estava vazio e as escuras. Nao havia nada que eu pudesse fazer, senao esperar.

Ainda estava sentado no bar quando ela voltou, as sete horas. Usava agora um severo vestido preto, com dois fios de perolas em volta do pescoco, e carregava o casacao marrom. Era evidente que estava planejando sair. Parou a porta e olhou em volta. A familia americana estava sentada a uma mesa, o pai e a mae tomando martinis, as criancas bebendo Coca-Cola e o pai de vez em quando dizendo:

– Pelo amor de Deus, criancas, voces nao vao parar de gritar?

Um idoso casal ingles estava sentado do outro lado do salao, o senhor lendo o Times londrino de tres dias antes, a senhora, num vaporoso vestido florido, olhando para o ar.

Um grupo de italianos conversava sem parar e consegui entender a palavra 'desgrazia', usada repetidas vezes e com grande intensidade desde que se tinham sentado, quinze minutos antes. Nao havia era jeito de eu saber a que desgraca se referiam.

So eu estava sozinho.

Uma pequena careta torceu a generosa boca vermelha da mulher junto a porta. Tinha a pele palida, com um delicado rubor sobre as proeminentes macas do rosto. Os olhos eram de um azul escuro, quase violeta; a silhueta, francamente revelada pelo sobrio vestido preto, era elastica; as pernas, esbeltas e bem-feitas. Decidi que ela nao era apenas bonita, mas linda. Bem o tipo de mulher que um homem capaz de furtar setenta mil dolares no aeroporto de Zurique escolheria para roubar, para umas ferias ilicitas, de um marido aleijado e confiante.

Ela notou que eu a estava olhando e franziu a testa, o que lhe ficava muito bem. Abaixei os olhos. Dali a pouco, ela atravessou o salao e sentou-se a uma mesa perto da minha, jogando o casaco para cima da outra cadeira e tirando um maco de cigarros e um isqueiro de ouro da bolsa.

O garcom correu para ela e acendeu-lhe o cigarro. Ela era o tipo de mulher que e servida imediatamente em qualquer ocasiao. O garcom era um belo rapaz moreno, com olhos ardentes e vivos e dentes esplendidos, que mostrou num amplo sorriso ao se inclinar para saber o que a senhora desejava.

– Un pink gin, per favore – disse ela. – Sem gelo. – O sotaque era bem britanico.

– Outro uisque com soda, por favor – disse eu ao garcom.

– Prego? – O sorriso do homem desapareceu ao olhar para mim. Nao me tinha perguntado o que eu queria.

– Ancora un whiskey con soda – traduziu a mulher, impacientemente.

– Si, signora – disse o garcom, sorrindo de novo.

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