de ferro. Ou para Katmandu. A ideia de Drusack no hospital nao me largava.

– Esses horriveis jogos de bridge! – suspirou Flora Sloane, enquanto bebericava o seu bloody-mary. – Ele esta perdendo uma fortuna. Jogam a cinco cents cada ponto. Todo mundo sabe que Fabian e praticamente um profissional. Todo inverno ele passa aqui dois meses e sai rico. Procuro fazer Bill entender que nao e tao bom jogador de bridge quanto Fabian, mas e tao teimoso, que se recusa a acreditar que alguem seja melhor do que ele em qualquer coisa. Depois, quando perde, fica furioso comigo. E o pior perdedor deste mundo. Voce nao acreditaria, se eu lhe contasse as coisas que ele me diz. Quando volta ao quarto, depois de um desses horriveis jogos, e um verdadeiro pesadelo. Nao dormi bem uma noite sequer desde que chegamos. De manha, tenho de me forcar a calcar as botas de esqui. Quando formos embora, vou parecer uma bruxa velha.

– Ora, por favor, Flora – disse eu, fazendo a esperada objecao. – Nem que quisesse, nunca pareceria uma bruxa. Voce parece uma flor. – E era verdade. A qualquer hora do dia ou da noite, com qualquer roupa, ela parecia sempre uma peonia aberta.

– As aparencias enganam – retrucou ela, com ar sombrio. – Nao sou tao forte quanto pareco. Em crianca, fui muito delicada. Francamente, querido, se eu nao soubesse que voce estava esperando por mim todas as manhas, acho que ficaria o dia inteiro na cama.

– Pobrezinha – disse eu. A ideia de Flora ficando o dia inteiro na cama era deliciosa, mas nao pela razao que ela poderia pensar. Com ela na cama, eu poderia devolver os esquis e as botas alugados e nunca mais subir a montanha nesse inverno. Mesmo tendo descoberto que a minha visao me permitia esquiar, depois de Vermont o esporte nao tinha mais alegria para mim.

– Mas ha um raio de esperanca – disse Flora, deitando-me um daqueles olhares de esguelha, provocantes, que eu tanto detestava. – Parece que Bill vai ter que voltar a Nova York na semana que vem. Entao, vamos poder ficar juntos o tempo todo. – Disse aquele 'todo' com uma enfase que me fez olhar em volta, para ver se alguem estava escutando. – Nao seria maravilhoso?

– E… m… ma… maravilhoso – falei. Era a primeira vez que gaguejava desde que deixara o St. Augustine. – Va… vamos al… almocar.

Nessa tarde, ela me presenteou com um relogio. Um modelo grande e esportivo, capaz de funcionar perfeitamente a cem metros debaixo d'agua ou se atirado do alto de um edificio. Tinha um cronometro e toda especie de mostradores. So faltava mesmo tocar o hino nacional suico.

– Voce nao devia ter feito isso – protestei debilmente.

– Quero que voce se lembre desta semana maravilhosa, sempre que olhar as horas – respondeu ela. – Como e? Nao vai me dar nem um beijinho?

Estavamos num stubli no meio da cidade, onde tinhamos parado a caminho do hotel depois de esquiar. Eu gostava do lugar por nao ter na adega nem uma garrafa de champanha. Havia no ar um cheiro de queijo derretido e la umida, proveniente dos outros esquiadores que enchiam a sala, bebendo cerveja. Beijei-lhe levemente a face.

– Nao gostou do relogio? – perguntou ela.

– Adorei – respondi. – A… adorei m… mesmo. So que deve ter custado tao caro!

– Nem tanto, querido – retrucou ela. – Se nao tivesse vindo e me mimado, eu teria contratado um professor de esqui e voce nem sabe como saem caros os professores de esqui num lugar como este! Alem do mais, a gente ainda tem de lhes pagar o almoco. E como comem! Acho que passam a batatas o resto do ano e tiram a barriga da miseria no inverno. – Ela podia ser voluvel, mas era tambem economica. – Deixe-me ajustar-lhe o relogio – falou, colocando-o no meu pulso. – Bem masculino, nao?

– Acho que e uma boa maneira de descreve-lo – falei. Quando conseguisse livrar-me dos Sloane, marido e mulher, leva-lo-ia de volta a joalheria, para ver quanto me davam. Devia ter custado pelo menos trezentos dolares.

– Mas nao diga nada a Bill – pediu ela. – Quero que seja um segredo entre nos dois. Um segredinho. Voce vai se lembrar, nao vai?

– Vou – prometi. Era uma promessa que eu nao iria esquecer.

A crise surgiu na manha seguinte. Quando ela desceu para o hall, onde como de habito eu a esperava as dez horas, nao estava vestida para esquiar.

– Acho que nao vou poder esquiar com voce esta manha, querido – disse ela. – Bill tem de ir a Zurique hoje e vou acompanha-lo ate a estacao. Pobre homem! Com toda esta neve e este dia lindo! – Riu. – E vai ter que pernoitar la. Nao e horrivel?

– Horrivel – assenti.

– Espero que voce nao se sinta muito so, esquiando sem mim – disse ela.

– Bem, o que nao tem remedio, remediado esta – retruquei.

– Na verdade – disse ela -, eu nao estava mesmo com vontade de esquiar hoje. Tenho uma ideia! Por que voce nao vai esquiar agora e, a uma, desce e almocamos juntos? O trem de Bill sai as vinte para a uma. Podemos passar uma tarde de sonho, juntos…

– Otima ideia!

– Podemos comecar tomando uma bela garrafa de champanha bem gelada no bar – sugeriu ela. – E depois veremos. Nao acha boa ideia?

– Otima – repeti.

Ela deitou-me um dos seus sorrisos significativos e voltou para junto do marido. Eu sai para o ar frio da manha sentindo um principio de dor de cabeca. Nao tinha nenhuma intencao de esquiar. Se eu nunca mais visse um par de esquis na minha frente, nao faria nenhuma diferenca. Lamentava ter-me deixado levar pelo que Wales falara do charter do clube de esqui, pois fora o comeco da cadeia de acontecimentos que estava levando a Sra. Sloane inexoravelmente para a minha cama. Entretanto, e isso eu tinha de admitir, se tivesse atravessado o oceano num voo regular e minha mala tivesse sido roubada, eu nao teria ideia alguma de onde procura-la. E atraves dos Sloane conhecera alguns dos outros companheiros de viagem e pudera lhes falar da minha mala perdida. A verdade era que, ate o momento, nenhum deles caira na armadilha, mas sempre se podia esperar que, na proxima montanha ou no proximo bar alpino, um rosto se erguendo, uma exclamacao involuntaria ou uma palavra impensada me pusessem na pista da minha fortuna.

Pensei em pegar o mesmo trem que Sloane, mas que poderia eu fazer quando chegassemos a Zurique? Nao podia espiona-lo por toda a cidade.

Pensei na tarde de sonho que me esperava, comecando por uma bela garrafa de champanha (na minha conta), e gemi. Um rapaz que descia a rua a minha frente, apoiado em muletas, de perna engessada, ouviu-me e voltou-se, curioso. Cada qual com os seus problemas.

Olhei para uma vitrina e vi-me refletido no vidro: um homem jovem, metido numa roupa de esqui elegante, de ferias num dos lugares mais glamourosos do mundo. Podiam tirar a minha foto para um anuncio de revista de turismo. As ferias dos seus sonhos.

Foi entao que ri para mim mesmo. Tive uma ideia. Comecei a descer a rua atras do rapaz de muletas; quando passei por ele, eu coxeava bastante. Olhou para mim com simpatia e disse:

– Voce tambem?

– Foi so uma distensao – respondi.

Quando cheguei ao pequeno hospital particular, convenientemente situado no centro da cidade, estava imitando bastante bem um esquiador que houvesse sofrido uma queda.

Duas horas depois, eu saia do hospital equipado com muletas, minha perna esquerda engessada acima do joelho. Fiquei o resto da manha sentado num restaurante, bebendo cafe e comendo croissants, enquanto lia o Herald Tribune do dia anterior.

O jovem medico que me atendera mostrara-se cetico quando eu lhe disse que tinha a certeza de ter quebrado a perna.

– Uma fissura – disse-lhe eu. – Ja me aconteceu outras duas vezes. – Ficara ainda mais cetico depois de olhar para as radiografias, mas eu insistira e ele dissera:

– Bem, a perna e sua.

A Suica era um pais onde se podia conseguir assistencia medica de qualquer tipo, necessaria ou nao, desde que se pagasse. Tinha ouvido contar de um sujeito com uma infeccao no polegar, que ficara obcecado com a ideia de que tinha um cancer. Medicos dos Estados Unidos, da Inglaterra, Franca, Espanha e Noruega tinham-lhe garantido que se tratava apenas de uma infeccao por fungo e prescrito pomadas. Na Suica, por um determinado preco, ele por fim conseguira que lhe amputassem o dedo. Atualmente, vivia feliz em San Francisco, sem polegar.

A uma hora, peguei um taxi de volta ao Palace. Aceitei as expressoes de compaixao dos funcionarios do hotel com um sorriso palido e assumi um ar de sofrimento estoico ao entrar no bar.

Flora Sloane estava sentada a um canto, perto da janela, com uma garrafa de champanha por abrir num balde de gelo diante dela. Vestia uma calca comprida verde, bem justa, e um sueter que realcava ao maximo o seu busto generoso e, devo confessar, bem-feito. O casaco de pele de leopardo estava numa cadeira ao lado e o seu perfume fazia o bar parecer uma floricultura cheia de plantas tropicais exoticas.

Ela abriu a boca ao me ver entrar usando as muletas com dificuldade.

– Ora, bolas! – exclamou.

– Nao e nada – disse eu, valentemente. – Apenas uma fraturinha. Daqui a um mes e meio poderei tirar o gesso. Pelo menos, foi isso que o medico falou. – Deixei-me cair numa cadeira, com um som que ouvidos sensiveis teriam distinguido como um gemido abafado, e coloquei a perna engessada numa outra cadeira.

– Como diabo voce foi fazer isso? – perguntou ela, aborrecida.

– Meus esquis nao se abriram. – Ate ai, era verdade. Eu nao tocara neles naquele dia. – Cruzei os esquis e eles nao se abriram.

– Um bocado estranho – disse ela. – Voce nao caiu nem uma vez desde que chegou.

– Acho que eu nao estava prestando atencao – expliquei. – Acho que estava pensando nesta tarde e…

A expressao dela mudou.

– Pobrezinho! – disse. – Bem, de qualquer maneira, podemos tomar o nosso champanha. – E fez um sinal ao garcom.

– O medico proibiu-me de beber – falei. – Disse que prejudicava o processo de cura.

– Todo mundo que eu conheco que quebrou ossos continuou bebendo – retrucou ela. Nao era mulher que gostasse de se ver privada de champanha.

– Talvez – falei. – Mas o medico disse que meus ossos sao muito frageis. – E fiz uma careta de dor.

Ela tocou-me na mao.

– Esta doendo?

– Um pouco – confessei. – O efeito da morfina esta comecando a passar.

– Ainda assim – disse ela -, vamos poder almocar…

– Detesto ter de desaponta-la, Flora – atalhei. – Mas estou um pouco enjoado. Sinto ate vontade de vomitar. O medico disse que era melhor eu ficar hoje de cama, com a perna apoiada numas almofadas. Sinto muito.

– Bem, so posso dizer que voce escolheu o dia errado para cair – disse ela, passando a mao no busto vestido de caxemira. – E eu, que me vesti para voce.

– Os acidentes acontecem quando tem de acontecer – falei, filosoficamente. – Mas voce esta linda. – Levantei-me com esforco, apoiando-me num pe so. – Acho melhor subir agora.

– Vou com voce – disse ela, erguendo-se.

– Se voce nao se ofende, preferia ficar sozinho. Desde crianca, gosto de estar sozinho quando nao estou bem. – Nao queria ficar deitado numa cama com Flora Sloane a solta no quarto. – Beba o champanha por nos dois. Por favor, ponha a garrafa na minha conta – disse eu para o garcom.

– Posso ir ao seu quarto mais tarde? – perguntou ela.

– Bem, agora vou procurar dormir. Telefono-lhe quando acordar. Nao se preocupe comigo, meu bem.

E sai, deixando-a no bar, esplendida e desapontada, na sua calca verde e justa e no seu sueter de caxemira.

Quando o sol estava se pondo, num fulgor rosado sobre os picos distantes que se viam da minha janela, a porta do meu quarto abriu-se de mansinho. Estava deitado na cama, olhando

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