– A moral e indivisivel, meu filho. Nao se pode escolher alguns pedacos, como se ela fosse uma torta pronta para ser servida. Convenhamos, Douglas, nem eu nem voce podemos mais nos dar ao luxo de falar em moral. Entendamo-nos, Douglas: nao foi uma questao de moral que fez voce fugir de Steubel… e sim uma grande relutancia em partilhar uma cela com ele.

– Voce tem sempre um maldito argumento para tudo – reclamei.

– Ainda bem que voce acha isso – retrucou ele, sorrindo. – Permita-me apresentar mais alguns argumentos. Desculpe-me se me repito, ao lhe assegurar que todas as minhas sugestoes sao no seu interesse. Ja lhe disse que os seus interesses sao tambem os meus. Estou pensando no tipo de vida que eventualmente vamos levar. Voce concorda, creio, que, facamos o que fizermos, teremos que faze-lo juntos… que vamos ter que estar sempre unidos ou em constante comunicacao, como quaisquer socios em qualquer empreendimento. Praticamente, em comunicacao diaria. Voce concorda com isso, nao?

– Concordo.

– Ate agora, tirando aquele pequeno desentendimento em Lugano, tem sido muito agradavel andar por ai, como temos feito.

– Realmente. – Eu nao lhe falara nos Alka-Seltzers, nem nas calcas apertadas.

– Com o tempo, porem, vai comecar a enjoar. Andar de hotel em hotel, mesmo que sejam os melhores do mundo, viver fazendo malas acaba cansando. Viajar so e divertido quando se tem para onde voltar. Mesmo na sua idade…

– Por favor, nao fale como se eu tivesse dez anos – pedi.

– Nao seja tao sensivel. – Riu. – Naturalmente, para mim voce e invejavelmente jovem. – O seu tom tornou-se mais serio. – Na verdade, a nossa diferenca de idade e uma vantagem. Duvido que pudessemos continuar como estamos se ambos tivessemos cinquenta ou trinta e tres anos. Comecariam as rivalidades, surgiriam as diferencas de temperamento. Assim, voce pode ser impaciente comigo e eu posso ser paciente com voce. Conseguimos um equilibrio muito util.

– Nao sou impaciente com voce – protestei. – So que, de vez em quando, fico apavorado.

Ele deu nova risada.

– Aceito isso como um elogio. Por falar nisso, Lily ou Eunice alguma vez lhe perguntaram como voce ganha a vida?

– Nunca.

– Boas meninas – disse ele. – Verdadeiras damas. Alguem ja lhe perguntou? Claro, desde o acontecido no hotel?

– Uma mulher. Em Washington. – Evelyn Coates.

– O que voce respondeu?

– Que a minha familia tinha posses.

– Nao esta mal. Pelo menos, por enquanto. Se lhe fizerem essa pergunta em Gstaad, sugiro que voce diga a mesma coisa. Mais tarde, poderemos inventar uma outra historia. Talvez voce possa dizer que e um consultor empresarial. Isso cobre uma porcao de atividades misteriosas, inclusive dos agentes da cia na Europa. Se as pessoas pensarem que voce e um consultor, em certos circulos isso so lhe trara vantagens. Voce tem uma cara tao honesta, que ninguem duvidara do que disser.

– E a sua cara? – perguntei. – Afinal de contas, as pessoas vao nos ver juntos a toda hora. Vamos acabar sendo responsaveis pela cara um do outro.

– A minha cara – disse ele, pensativo. – Muitas vezes fico horas examinando-a ao espelho. Nao por vaidade, garanto-lhe. Por curiosidade. Francamente, nao tenho bem a certeza de como pareco. Talvez moderadamente honesto. Qual a sua opiniao?

– Acho que um playboy a caminho da velhice – respondi, cruel.

Fabian suspirou.

– As vezes, Douglas – disse ele -, a franqueza nao e a virtude que se apregoa.

– Voce me perguntou.

– E verdade. Eu lhe perguntei. Nao lhe vou perguntar de novo. – Ficou por um momento em silencio. – Durante todos estes anos, tenho feito um esforco consciente numa certa direcao.

– Qual?

– Procurei parecer um proprietario rural ingles semi-aposentado. Pelo que lhe diz respeito, vejo que nao consegui.

– Nao conheco nenhum proprietario rural ingles semi-aposentado – retruquei. – Nunca nenhum se hospedou no Hotel St. Augustine.

– Nao obstante, voce nao percebeu que eu era americano?

– Nao.

– Um passo na direcao certa. – Alisou suavemente o bigode. – Voce ja pensou em morar na Inglaterra?

– Nao. Para falar a verdade, nunca pensei em morar em lugar nenhum. Se minha visao nao tivesse falhado, acho que estaria muito feliz vivendo em Vermont. Por que na Inglaterra?

– Muitos americanos acham o pais agradavel. Principalmente no campo, a uma hora ou pouco mais de Londres. Um povo educado, nada curioso. Nada de pressas nem de empurroes. Hospitaleiro para os excentricos. Teatro de primeira. Se voce gosta de cavalos ou de pescar salmoes…

– Gosto de cavalos. Principalmente deste Reve de Minuit.

– Belo animal! Mas nao estava pensando exatamente nesses termos. O pai de Eunice, por exemplo, caca a cavalo tres vezes por semana.

– E dai?

– Tem uma esplendida propriedade, a apenas uma hora de Londres…

– Estou comecando a entender – declarei, secamente.

– Eunice e inteiramente independente, do ponto de vista economico.

– Que surpresa!

– Na minha opiniao – continuou -, ela e muito bonita. E, quando nao esta sob a influencia dominadora da irma, uma moca brilhante e inteligente…

– Ela mal me olhou, desde que chegou – falei.

– Vai olhar – disse ele. – Nao tenha medo.

Nao lhe falei dos pensamentos lascivos que me tinham passado pela cabeca, com Eunice como alvo, quando atravessavamos o campo.

– Entao, foi por isso que voce pediu a Lily que convidasse Eunice para nos fazer companhia? – perguntei.

– Talvez, no meu subconsciente, isso me tenha ocorrido – disse ele. – Naquela altura.

– E agora?

– Agora, eu lhe aconselharia a pensar no caso – disse ele. – Nao ha grande pressa. Voce pode pesar os pros e os contras.

– Que diria Lily sobre isso?

– A julgar pelo que ela tem dito aqui e ali, eu diria que, de um modo geral, Lily reagiria favoravelmente. – De repente, bateu palmas. Estavamos chegando aos arredores de Berna. – Nao vamos falar mais no assunto. Por ora. Deixemos que as coisas sigam seu curso natural. – Estendeu a mao, tirou o mapa do porta-luvas e estudou-o por um momento, embora parecesse conhecer todas as curvas da estrada, todas as esquinas das ruas.

– Por falar nisso – perguntou, como quem nao quer nada -, Priscilla Dean, naquela noite, tambem lhe deu o numero do telefone?

– O que voce quer dizer com tambem? – disse eu, quase gaguejando.

– Ela me enfiou o numero na mao, mas nao sou vaidoso a ponto de achar que fosse o unico. Afinal de contas, ela e americana. Tradicionalmente democratica.

– Sim, ela me deu – confessei.

– E voce fez uso dele?

Lembrei-me do sinal de ocupado.

– Nao – respondi. – Nao fiz.

– Que sorte! – disse Fabian. – Ela pegou gonorreia do marroquino. Vire a direita na proxima esquina. Em cinco minutos chegaremos ao restaurante. Os martinis sao excelentes. Acho que voce deve tomar um ou dois e, com o almoco, um vinho branco. Dirigirei durante o resto da tarde.

CAPITULO XVII

Chegamos a Gstaad quando comecava a escurecer e a nevar. As luzes estavam se acendendo nos chales espalhados pelas colinas, contribuindo para uma atmosfera acolhedora. Aquela hora do dia e com aquele tempo, a cidade parecia encantada. Por um instante, tive saudades das vertentes mais ingremes de Vermont, dos nomes das lojas em ingles e nao em alemao. O que estaria Pat fazendo nesse momento?

Fabian nao voltara a falar em Eunice desde que sairamos de Berna, e eu lhe estava grato por isso. Era um problema que eu nao estava ainda pronto a enfrentar. O almoco em Berna fora tao bom quanto ele prometera. Eu tomara os dois martinis e metade de uma garrafa de vinho e sentira as minhas defesas enfraquecidas: podia ter sido facilmente persuadido a fazer algo de que mais tarde viesse a me arrepender.

Na rua principal, fomos obrigados a diminuir a marcha por causa de um grupo de jovens de ambos os sexos, todos vestindo jeans e anoraques de cores vivas, que estavam saindo de uma confeitaria, suas risadas ecoando no ar gelado. Era facil imaginar as tortas de chocolate e os montes de chantilly que eles teriam consumido, como aperitivo para o jantar.

– Isto e a coisa mais agradavel deste lugar – disse Fabian, manobrando para nao atropela-los. – A garotada. Ha uns tres ou quatro colegios internacionais na cidade. Uma estancia de esqui precisa de gente jovem. Da ao esporte uma atmosfera de inocencia. E as roupas sao feitas para traseiros juvenis, assim como o clima e para peles adolescentes. Voce vai ve-los esquiando, amanha, e vai lamentar ter ido a escola em Scranton.

O carro galgou uma colina, as rodas derrapando na neve recem-caida. No alto do morro, dominando a cidade, ficava o hotel, uma enorme imitacao de um castelo. Por dentro e por fora, o hotel nao dava a impressao de inocencia.

– A piada corrente – disse Fabian – e que Gstaad tenta ser St. Moritz mas nunca vai conseguir.

– Para mim, esta otimo – disse eu. Nao tinha o menor desejo de rever St. Moritz.

Preenchemos as fichas. Como de costume, todos na recepcao conheciam Fabian, todos pareciam encantados de ve-lo. Para onde quer que fosse, so recebia exclamacoes de boas-vindas.

– As senhoras deixaram um recado – disse o recepcionista. – Mandaram dizer que estao no bar.

– Que surpresa! – falou Fabian.

O bar era grande e escuro, mas nao tao escuro que eu nao pudesse distinguir Lily e Eunice, ao fundo da sala. Estavam ainda vestidas com roupas de esqui e sentadas a uma mesa com cinco homens. Em cima da mesa havia uma garrafa de dois litros de champanha, e Lily estava contando uma historia que, de onde eu estava, nao conseguia ouvir, mas que terminou com uma explosao de gargalhadas que fez com que as outras pessoas no bar se virassem e olhassem para a mesa deles.

Estaquei junto a porta. Duvidava de que eu ou Fabian fossemos recebidos com satisfacao.

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