– Talvez tenha dito – respondeu Fabian. – Sinceramente, nao me lembro.

– De qualquer maneira – falou Steubel -, aqui esta a tela. Tenho certeza de que nao preciso dizer ao professor do seu valor.

Ouvi-o respirar ofegante, quando me aproximei da tela para olha-la. Se o plano de Fabian era enervar o homem, estava acertando em cheio.

Apos mais ou menos um minuto de silencioso escrutinio, sacudi a cabeca e virei-me.

– Naturalmente, eu posso me enganar – falei. – Mas, apos um exame superficial, eu diria que nao se trata de um Tintoretto. Talvez seja da escola de Tintoretto, mas ate disso eu duvido.

– Professor Grimes! – exclamou Fabian, numa voz sentida. – Decerto o senhor nao teve tempo… em apenas um minuto… a luz artificial…

A respiracao do Sr. Steubel era cada vez mais ofegante e ele se apoiara a mesa de jantar.

– Sr. Fabian – retruquei, inflexivel -, pediu-me que lhe desse a minha opiniao. Foi o que fiz.

– Mas, por atencao ao Sr. Steubel… – Fabian estava a procura de palavras e puxava furiosamente o bigode. – Por simples cortesia… acho que o senhor devia voltar amanha. A luz do dia. Ora… isto e absurdo. Absurdo. O Sr. Steubel diz que tem os documentos…

– Tenho os documentos – gemeu Steubel. – Berenson em pessoa autenticou o quadro. Berenson…

Eu nao tinha a menor ideia de quem era Berenson, mas resolvi arriscar.

– Berenson esta morto, Sr. Steubel – falei.

– Quando ainda estava vivo – disse Steubel. Eu atirara no verde para colher maduro. Minhas credenciais como perito em arte estavam confirmadas.

– Naturalmente, o senhor pode pedir outras opinioes – disse eu. – Posso dar-lhe uma lista de colegas meus.

– Non prrecisa de nenhum colega seu, prrofessor – gritou Steubel, ja sem cuidado algum de falar bem ingles. Por um momento, receei que ele fosse bater-me com uma das suas enormes maos. – Non prrecisa de nenhum maldito amerricano para me fir falar de Tintoretto.

– Acho que vou ter que ir andando – disse eu. – Como o senhor observou, nao e facil conseguir ligacao para a Italia. Vem tambem, Sr. Fabian?

– Sim, eu tambem vou – disse Fabian, como se praguejasse. – Eu lhe telefono mais tarde, Sr. Steubel. Podemos marcar um encontro para amanha, para conversar com mais calma.

– Venha sozinho! – foi tudo quanto Steubel disse, quando saimos para o hall as escuras. A velhinha de touca rendada estava a apenas alguns metros de distancia, como se tivesse estado de ouvido alerta para o que se dizia na sala de jantar. Abriu-nos a porta da rua sem uma palavra. Mesmo que nao tivesse entendido o que se dissera na sala, os gritos que decerto ouvira e a rapidez da conferencia deviam te-la impressionado mal.

Fabian bateu a porta do carro, tao logo se sentou ao volante do Jaguar. Sentei-me ao lado dele e fechei a porta com cuidado. Fabian nao disse nada enquanto ligava o motor e saia como um louco. Ao dar marcha a re para entrar na estrada principal, ouvi o estilhacar de vidro: ele batera com a lanterna traseira numa mureta. Nao falei nada. Ele tambem nao abriu a boca ate chegarmos ao lago. Ai, estacionou o carro e desligou o motor.

– Agora – disse ele, fazendo um esforco para nao elevar a voz -, diga-me que historia foi aquela!

– Qual historia? – perguntei, inocentemente.

– Como diabo voce pode saber se um Tintoretto e falso ou verdadeiro?

– Eu nao sei – falei. – Mas estava recebendo maus fluidos daquele tal Sr. Steubel.

– Fluidos! Corremos o risco de perder vinte e cinco mil dolares e voce vem me falar em fluidos! – explodiu Fabian.

– Esse seu Sr. Steubel e um vigarista.

– E nos, o que somos? Monges trapistas?

– Se nos tornamos vigaristas, foi por acidente – retruquei, nao inteiramente sincero. – Steubel e vigarista de nascimento, por vocacao e opcao.

– Isso e voce quem diz. – Fabian estava agora na defensiva. – Voce fala com um homem durante tres minutos e inventa-lhe uma historia. Fiz negocios com ele e nunca me deixou na mao. Se tivessemos fechado este negocio, eu lhe garanto que logo teriamos o dinheiro.

– Possivelmente – concordei. – Mas tambem podiamos acabar na cadeia.

– Por que? Transportar um Tintoretto, mesmo falso, atraves da Suica, nao e nenhum crime. Se ha coisa que eu detesto num homem, Douglas, permita que lhe diga, e a timidez. E, se quer saber de uma coisa, acho que ele esta dizendo a verdade. Que o quadro e um Tintoretto, Professor Grimes, da Universidade de Missouri.

– Ja acabou, Miles? – perguntei.

– Por ora. Mas nao me responsabilizo pelo futuro.

– Transportar um Tintoretto, mesmo falso, nao e, como voce diz, um crime – falei. – Mas promover a venda de um Tintoretto roubado e crime. E nao quero participar de uma coisa dessas.

– Como e que voce sabe que o quadro foi roubado? – perguntou Fabian, sombrio.

– Sinto. E voce tambem deve sentir.

– Eu nao sei de nada – disse Fabian, defensivamente.

– Voce por acaso perguntou?

– Claro que nao. Isso nao me diz respeito. E nem lhe devia interessar. O que nao sabemos nao nos pode atingir. Se voce esta resolvido a cair fora, pode faze-lo. Vou telefonar a Steubel assim que chegar ao hotel, para lhe dizer que amanha irei apanhar o quadro.

– Se voce fizer isso – falei, muito serio – mandarei a policia esperar por voce e pelo velho Sr. Steubel na sua mansao de familia.

– Voce esta brincando, Douglas – disse Fabian, incredulo.

– Experimente para ver. Escute… tudo o que tenho feito, desde que sai do Hotel St. Augustine, tem sido legal, ou quase, inclusive tudo o que tenho feito com voce. Posso ser um criminoso, mas um criminoso circunstancial. Se ha algo de que me possam acusar, sera de fugir ao imposto de renda, mas ninguem leva isso a serio. Nao quero ir parar na prisao por causa de ninguem. Meta isso em sua cabeca.

– Se eu lhe provar que o quadro e autentico e que nao foi roubado…

– Voce sabe que nao pode provar isso.

Fabian suspirou e ligou o motor.

– Vou telefonar para Steubel, avisando-lhe que estarei na casa dele as dez horas da manha.

– A policia estara la, a espera – repeti.

– Nao acredito – disse Fabian, olhando para a estrada.

– Pois pode acreditar, Miles – retruquei. – Pode acreditar.

Quando chegamos ao hotel, nao trocamos uma palavra. Fabian dirigiu-se para o telefone e eu entrei no bar. Sabia que ele nao tardaria a ir ter comigo. Estava no meu segundo uisque quando ele entrou. Nunca o tinha visto tao serio. Sentou-se num tamborete a meu lado.

– Uma garrafa de Moet et Chandon – disse ele ao garcom. – E duas tacas. – Quando o garcom encheu as tacas, ele virou-se para mim. – A nossa saude – brindou, com um sorriso. – Nao falei com Steubel.

– Otimo – repliquei. – Ainda nao chamei a policia.

– Falei com a velha em italiano – disse ele. – Ela estava chorando. Dez minutos depois de nos sairmos, a policia chegou e prendeu o patrao dela. Levaram tambem o quadro. Era mesmo um Tintoretto, roubado ha dezesseis meses de uma colecao particular perto de Winterthur. – Soltou uma gargalhada. – Sabia que nao o tinha convidado a toa para me acompanhar a Lugano, Professor Grimes.

Brindamos e Fabian soltou nova gargalhada, fazendo com que todo mundo olhasse espantado para ele.

CAPITULO XVI

Nada mais tendo a fazer em Lugano, partimos, na manha seguinte, no novo Jaguar azul-escuro, para Gstaad. Desta vez, eu ia dirigindo, desejoso de experimentar aquela bela maquina enquanto subiamos as montanhas, ao sol suave de inverno, entre Zurique e Berna. Fabian ia ao meu lado, assobiando um tema que reconheci como sendo do concerto de Brahms que tinhamos ouvido dias antes. De vez em quando, ele ria. Imagino que estivesse pensando em Steubel na prisao de Lugano.

As cidades por onde passamos eram limpas e ordenadas, os campos geometricamente divididos, as casas, com seus grandes celeiros e telhados inclinados, testemunhas de uma vida pacifica e solida, firmemente enraizada num passado prospero. Era uma paisagem de paz e continuidade, na qual nao se podiam imaginar exercitos combatendo, fugitivos escapando, credores ou policiais perseguindo. Rechacei prontamente a ideia de que, se os policiais pelos quais de vez em quando passavamos e que polidamente nos mandavam seguir pelas ruas imaculadas soubessem a verdadeira historia daqueles dois cavalheiros num automovel reluzente, nos prenderiam imediatamente e nos escoltariam ate a fronteira mais proxima.

Como nao havia maneira de Fabian arriscar o nosso dinheiro enquanto estavamos na estrada, eu estava livre, pelo menos por um dia, de preocupacoes, da flutuacao entre uma tremula esperanca e uma horrivel ansiedade, que sempre me invadiam quando sabia que Fabian estava perto de um telefone ou de um banco. Nessa manha, nao precisara tomar nenhum Alka-Seltzer e sabia que, a hora do almoco, ia estar com apetite. Como de habito, Fabian conhecia um otimo restaurante em Berna e me prometera um almoco memoravel.

O deslizante movimento do carro gerou, como tantas vezes acontece, agradaveis correntes sexuais no meu organismo e, enquanto dirigia, ia revivendo, na memoria, os momentos culminantes da noite que passara em Florenca com Lily e recordava, com prazer, a voz suave de Eunice, esperando por mim ao fim do dia, as sardas infantis no seu narizinho britanicamente arrebitado, sua esbelta garganta e seu busto a seculo XIX. Se nesse momento ela estivesse a meu lado, em vez de Fabian, eu nao teria hesitado em me dirigir para um dos encantadores hoteis de madeira pelos quais passavamos, com nomes como Gasthaus Lowen e Hotel Drei Koenige, e pedir um quarto de casal para a tarde. Bem, consolei-me, prazer adiado e prazer aumentado, e pisei com mais forca no acelerador.

Ao ver neve nos campos do alto da montanha, percebi que estava ate pensando novamente em esquiar. Os dias passados na pesada atmosfera de Zurique, as conferencias com advogados e banqueiros tinham-me feito ansiar pelo ar da montanha e o exercicio violento.

– Voce ja esquiou em Gstaad? – perguntou Fabian. A vista da neve devia te-lo feito pensar o mesmo que eu.

– Nao – respondi. – So em Vermont e em St.Moritz. Mas ouvi dizer que as pistas sao faceis.

– Pode-se quebrar a espinha la – retrucou ele – como em qualquer outro lugar.

– Que tal sao as mocas esquiando?

– Esquiam como inglesas – disse ele, rindo. – Nao desanimam facilmente. Voce vai ver. Nao sao como a Sra. Sloane.

– Nao me fale dela.

– Nao deu certo, hem?

– Digamos que nao.

– Nao entendi por que voce perdeu tempo com ela. Antes mesmo de conhece-lo, achei que ela nao era o seu tipo.

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