Saimos de Nice com Fabian ao volante do carro alugado. O transito era pouco, o mar estava calmo, a nossa esquerda, e a manha estava linda. Fabian guiava com cuidado, prudentemente, e eu descansava ao lado dele, a euforia da noite anterior ainda nao inteiramente dissipada pela luz do dia. Viajamos em silencio ate sairmos de Nice e passarmos alem do aeroporto. De repente, Fabian disse:

– Voce nao acha que eu devia conhecer as circunstancias?

– Que circunstancias? – perguntei, embora pudesse imaginar do que era que ele estava falando.

– Como foi que o dinheiro foi parar em suas maos. Por que achou que devia sair dos Estados Unidos. Imagino que voce estivesse correndo perigo. De certa forma, eu tambem agora poderia correr, nao acha?

– Sim, de certa forma – concordei.

Estavamos subindo os contrafortes dos Alpes-Maritimos, a estrada ziguezagueando por entre florestas de pinheiros, plantacoes de oliveiras e vinhedos, o ar puro e perfumado. Naquela paisagem inocente, sob o sol mediterraneo, a ideia de perigo parecia absurda, as ruas escuras da noite nova-iorquina remotas, como se fizessem parte de um outro mundo. Eu teria preferido nao falar, nao porque desejasse esconder os fatos, mas porque queria gozar daquele esplendido presente, sem lembrancas sinistras a turva-lo. Mas reconhecia que Fabian tinha todo o direito de saber. Enquanto subiamos por entre os montes floridos, contei-lhe tudo, do principio ao fim.

Ele ouviu em silencio e, quando terminei, falou:

– Supondo que continuemos a ser bem sucedidos nas nossas… operacoes… – sorriu – como temos sido ate agora… Supondo que em pouco tempo pudessemos devolver os cem mil dolares e ainda ficar com bastante… Voce procuraria descobrir a verdadeira identidade do seu legitimo dono e devolver o dinheiro a seus herdeiros?

– Nao – respondi. – Nao procuraria.

– Otima resposta! – disse ele. – Nao sei como voce poderia fazer isso sem por alguem na sua pista. Na nossa pista. Tem de haver um limite para a curiosidade malsa. Houve alguma indicacao de que voce esta sendo procurado?

– So o que aconteceu com Drusack.

– Eu teria tomado isso como um bom aviso. – Fabian fez uma pequena careta. – Voce, antes disto, teve algo a ver com criminosos?

– Nao.

– Eu tampouco. Isso talvez seja uma vantagem. Nao sabemos como eles pensam, de modo que nao cairemos na tentacao perigosa de procurar passar-lhes a perna. Ainda assim, acho que ate aqui voce agiu certo, nao parando nunca num lugar. Durante algum tempo, acho que sera prudente continuar. Voce nao se importa em viajar, nao e?

– Adoro viajar – respondi. – Principalmente agora, que posso viajar confortavelmente.

– Ja lhe passou pela cabeca que o caso pode nao ter nada a ver com criminosos?

– Nao.

– Li nos jornais, ha algum tempo, que um homem morreu num acidente de aviao e encontraram com ele sessenta mil dolares. Tratava-se de um preeminente republicano a caminho da sede do Partido Republicano na California. Foi durante a segunda campanha presidencial de Eisenhower. O dinheiro que voce encontrou podia ser uma contribuicao secreta para uma campanha eleitoral.

– Talvez – disse eu. – So que um preeminente republicano jamais se hospedaria no Hotel St. Augustine…

– Bem… – Fabian deu de ombros. – Esperemos nunca descobrir a quem pertencia esse dinheiro ou a quem se destinava. Acha que seu irmao lhe pagara os vinte e cinco mil que voce lhe emprestou?

– Nao. Acho que nao.

– Voce e um homem generoso. Gosto disso. E uma das coisas boas de se ter dinheiro. Leva a generosidade. – Estavamos entrando no terreno do museu. – Veja isto, por exemplo – disse Fabian. – Soberbo edificio, esplendida colecao, maravilhosamente apresentada. Que satisfacao deve ter sido assinar o cheque que tornou tudo isto possivel!

Estacionou o carro, saimos e encaminhamo-nos para o belo e severo edificio erigido no alto de um morro, rodeado por um parque em que enormes estatuas angulares, colocadas entre a folhagem das arvores, pareciam tambem estar a ponto de adquirir movimento.

Ao entrar no museu, que estava quase deserto, fiquei impressionado com as obras expostas. Nunca fora muito de frequentar museus e minha experiencia de artes plasticas se resumia a pintores e escultores tradicionais. Mas ali havia formas que so existiam nas mentes dos artistas, manchas em telas, distorcoes de objetos cotidianos e do corpo humano que me diziam muito pouco. Fabian, pelo contrario, ia lentamente de uma obra para outra, silencioso, expressao concentrada. Quando por fim saimos e nos dirigimos para o carro, ele suspirou profundamente, como se estivesse se recuperando de um tremendo esforco.

– Que colecao de tesouros! – exclamou. – Tanta energia, tanta luta, tanto humor demente, tudo reunido num so lugar. Como e, gostou?

– Receio nao ter entendido quase nada.

– O ultimo homem sincero – comentou, com um sorriso. – Bem, estou vendo que nos dois vamos dedicar bastante tempo aos museus. Voce eventualmente acabara atravessando um limiar de emocao… quase que so olhando. Mas e como todas as coisas… e preciso aprender.

– E valera a pena? – Sabia que estava falando como um ignorante, mas nao gostava daquela historia de que o meu dever era aprender e o dele ensinar. Afinal de contas, se nao fosse o meu dinheiro, ele nao estaria essa manha no litoral mediterraneo e sim em St. Moritz, procurando ganhar, a mesa de bridge, dinheiro suficiente para pagar o hotel.

– Para mim, vale a pena – respondeu Fabian, pousando a mao no meu braco. – Nao subestime os prazeres do espirito, Douglas. Nem so de caviar vive o homem.

Paramos num cafe numa praca de St. Paul-de-Vence e sentamo-nos a uma mesa ao ar livre, tomando uma garrafa de vinho branco e vendo alguns velhos jogarem boules ' sob as arvores da praca, suas vozes ecoando roucamente no muro velho e cor de ferrugem que fizera parte das fortificacoes da cidade na Idade Media. Bebemos lentamente o vinho frio, gozando do ocio, da ausencia de pressa em ir a algum lugar ou fazer alguma coisa, vendo um jogo cujo resultado nao traria lucros ou prejuizos a ninguem.

– Nao diluamos o prazer – disse eu. – Lembra-se de quem disse isso?

Fabian riu.

– Claro que me lembro. – E, apos um momento: – Por falar nisso… deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Qual e o seu conceito de 'dinheiro'?

– Acho que nunca pensei nisso. – Dei de ombros. – Nao creio que tenha um conceito. Estranho, nao?

– Um pouco – disse Fabian.

– Se eu lhe fizesse essa mesma pergunta, qual seria a sua resposta?

– Nenhum conceito sobre dinheiro – respondeu Fabian – existe num estado puro. E preciso voce saber o que pensa do mundo em geral antes de poder ter uma nocao clara a respeito do dinheiro. Por exemplo, seu modo de ver o mundo, pelo que voce me disse, mudou de um dia para o outro.

– Sim, naquele dia no consultorio do medico – concordei.

– Nao e verdade que, antes desse dia, voce tinha um conceito sobre o dinheiro e o que ele significava para voce diferente do que passou a ter depois?

– Sim, e verdade.

– Eu nunca passei por mudancas dramaticas como essa – disse Fabian. – Ha muito tempo, decidi que o mundo era um lugar de infinitas injusticas. Nesses anos todos de vida, o que tenho visto? Guerras em que milhoes de inocentes morreram, hecatombes, secas, fracassos de todos os tipos, corrupcao, o enriquecimento de ladroes, a multiplicacao geometrica das vitimas. E nada que eu pudesse fazer para alterar ou aliviar esse estado de coisas. Nao sou nenhum martir nem um reformador e, mesmo que fosse, nada de bom resultaria do meu sofrimento ou dos meus ensinamentos. Por isso… a minha intencao sempre foi procurar nao pertencer ao numero das vitimas. Ate onde eu pude ver, as pessoas que nao queriam ser vitimas tinham, pelo menos, uma coisa em comum: dinheiro. Assim, o meu conceito de 'dinheiro' comecou baseando-se na liberdade. Liberdade de movimentos. De ser nosso proprio dono. De dizer 'va pro diabo' no momento apropriado. Um homem pobre e como um rato num labirinto. Um poder superior decide por ele. Torna-se uma maquina cujo combustivel e a fome. Suas satisfacoes sao penosamente restritas. Naturalmente, ha sempre um rato excepcional, que consegue sair do labirinto, quase sempre levado por uma fome excepcional. Ou por simples acidente. Ou pela sorte. Como eu e voce. Bem, eu nao pretendo que toda a raca humana aspire, ou devesse aspirar, as mesmas coisas. Ha homens que almejam o poder e que se rebaixam, traem, matam para obte-lo. E so olhar para alguns dos nossos presidentes e para os coroneis que governam quase todo o mundo, atualmente. Ha santos que preferem a fogueira a negar alguma verdade que eles acreditam lhes tenha sido confiada. Ha homens que sofrem de ulceras ou morrem de ataques cardiacos antes dos sessenta, a troco da ridicula distincao de chefiarem uma linha de producao, uma agencia de publicidade, uma firma de corretagem. Para nao falar das mulheres que se deixam escravizar por amor ou que se tornam prostitutas por mera preguica. Quando voce ganhava a vida como piloto, imagino que se julgasse feliz.

– Muito feliz – disse eu.

– Ja eu nao gosto de voar – falou Fabian. – No ar, ou me sinto chateado, ou apavorado. Cada qual gosta do que gosta. Meus gostos, receio que sejam banais e egoistas. Detesto trabalhar. Gosto da companhia de mulheres elegantes, gosto de viajar, de hospedar-me em hoteis de primeira, tradicionais. Tenho alma de colecionador, coisa que ate aqui tive de sufocar. Nada disso e particularmente admiravel, mas eu nao pretendo ser admiravel. Na verdade, ja que somos socios, gostaria que tivessemos os mesmos gostos. Isso reduziria a probabilidade de atrito entre nos. – Olhou para mim especulativamente. – Voce se considera digno de admiracao? – perguntou.

Pensei por um momento, procurando ser sincero comigo mesmo.

– Acho que nunca pensei nisso, que nunca me passou pela cabeca ser ou nao digno de admiracao.

– Voce e perigosamente modesto, Douglas – disse Fabian. – Num momento crucial, pode transformar-se num terrivel peso morto. Modestia e dinheiro nao combinam. Gosto de dinheiro, como voce bem pode imaginar, mas o processo de acumula-lo me entedia e a maioria das pessoas que passam a maior parte da sua vida acumulando-o me chateiam. Acho que o mundo do dinheiro e como uma cidade mal guardada, que deve ser atacada esporadicamente por forasteiros, gente como eu, nao sujeita as suas leis ou as suas pretensoes morais. Gracas a voce, Douglas, e ao feliz acidente que nos levou a comprar malas identicas, posso agora viver de acordo com a imagem ideal que sempre fiz de mim mesmo. Quanto a voce… embora passe dos trinta, ha algo – espero que voce nao se ofenda -, algo juvenil, quase adolescente, ou nao formado, na sua personalidade. Se me permite dize-lo, como homem que sempre teve um fito na vida, acho que lhe falta justamente isso: direcao. Ou estarei sendo injusto?

– Um pouco – respondi. – Talvez nao seja falta de direcao e sim confusao de direcoes.

– Talvez seja isso – assentiu Fabian. – Talvez voce ainda nao esteja pronto para aceitar as consequencias do ato que cometeu.

– Que ato? – perguntei, intrigado.

– O daquela noite, no Hotel St. Augustine. Deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Suponha que voce se tivesse deparado com o morto, com todo aquele dinheiro, antes de saber que estava sofrendo da visao, quando ainda estava voando e pensando em se casar… voce teria feito o que fez?

– Nao – respondi. – Nunca.

– Essa e uma coisa com que sempre se pode contar – disse Fabian. – O homem errado estara sempre no lugar errado no momento certo. – Encheu novamente seu copo de vinho. – Quanto a mim… nunca em toda a minha vida tive ocasiao de hesitar. Bem, mas tudo isso pertence ao passado. Precisamos afastar-nos o mais possivel da fonte, tapa-la, por assim dizer, com tanto capital novo, que as pessoas nunca se lembrem de perguntar como foi que comecamos. Nao concorda?

– Em principio, sim – falei. – Mas como vamos fazer isso? Nao podemos comprar cavalos campeoes todos os dias…

– Nao – admitiu Fabian. – Temos de encarar isso como incomum.

– E voce me disse que nao pretende mais jogar bridge ou gamao.

– Nao. As pessoas com quem jogava me deprimiam. E sentia-me envergonhado por ter de fingir. A duplicidade e desagradavel para um homem que gosta de fazer um otimo conceito de si mesmo. Minha intencao, noite apos noite, era apenas ganhar dinheiro, mas tinha de fingir ser amigo deles, interessar-me pelas familias deles, gostar da companhia deles… Acho que estava ficando

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