[4]. De qualquer maneira, gosto de estimular a pobre industria britanica.

– Apoiado! – disse Lily.

O garcom trouxe o caviar.

– So limao, obrigado – disse Fabian, mandando de volta o prato com ovos cozidos e cebolas picadas. – Nao queremos diluir o prazer.

O garcom colocou pequenos montes de perolas cinzentas nos nossos pratos. Aquela era a quarta vez, em toda a minha vida, que eu provava caviar. Lembrava-me claramente das outras tres vezes.

– Tomamos um aviao para Zurique – disse Fabian -, onde eu tenho um negocio a resolver, e la podemos comprar o carro. Acho que na Suica estao os unicos vendedores de automoveis honestos que ha no mundo. Alem disso, em Zurique ha um hotel de primeira que eu gostaria que Douglas conhecesse.

'Puxa', pensei, 'se Miles Fabian voltasse a Lowell, Massachusetts! Ou se Drusack pudesse me ver agora.' Mas logo me arrependi de ter pensado em Drusack. Fabian ainda nao me perguntara por que cargas d'agua eu estava carregando setenta mil dolares numa mala e eu tampouco lhe contara. A verdade e que havia ainda muita coisa para conversar. Em Paris, Fabian passara a maior parte do tempo no estudio, aprendendo o metier [5], como ele dizia, enquanto eu bancava o turista, percorrendo a cidade. Quando estavamos juntos, Lily tambem quase sempre estava presente, e nenhum de nos dois, tinha a certeza, queria que ela soubesse dos detalhes da nossa sociedade, que era como eu agora a considerava. Quanto a ela, se achara estranho que o seu amante de uma noite em Florenca tivesse aparecido noutro pais como amigo e socio do seu amante de alguns anos, nao dera sinais disso. Como eu mais tarde constataria, desde que fosse admirada, alimentada e levada a lugares interessantes, ela nao fazia perguntas. Tinha um desdem aristocratico pelo maquinismo por tras dos acontecimentos. Era uma dessas mulheres impossiveis de imaginar numa cozinha ou num escritorio.

– Gostaria de trazer a baila um assunto delicado – disse Fabian, colocando destramente uma porcao de caviar na sua torrada, sem deixar cair nem uma so ovinha. – Trata-se de numeros. Ou melhor, do numero 3. – Olhou para Lily e depois para mim. – Entendem o que estou querendo dizer?

– Nao – respondi.

Lily nao disse nada.

– Nao e um bom numero para viajar – continuou Fabian. – Pode levar a divisao, ao subterfugio, ao ciume, a tragedia.

– Estou entendendo – falei, sentindo um calor subir-me pelo pescoco.

– Sem duvida voce concorda, Douglas, em que Lily e uma bela mulher.

Fiz que sim.

– E Douglas e um rapaz bem simpatico – prosseguiu Fabian, num tom paternal e tolerante. – Que vai ficar ainda mais bem-parecido a medida que for se acostumando ao dinheiro e depois que tiver um guarda-roupa novo, o que eu pretendo providenciar tao logo cheguemos a Roma.

– Sim – disse Lily, olhando fixamente para o prato.

– Temos de enfrentar a verdade. Estou ficando velho. Espero que ninguem me contradiga.

Ninguem o contradisse.

– As chances de aborrecimentos sao obvias – disse Fabian, servindo-se de mais caviar. – Se voce conhece alguma mulher com quem gostaria de viajar, Douglas, por que nao entra em contato com ela?

A imagem de Pat veio-me imediatamente a ideia, numa onda de ternura, mesclada de arrependimento. Raramente pensara nela, durante os anos em que trabalhara no St. Augustine. O gelo protetor que tomara conta de mim naquele ultimo dia em Vermont estava se derretendo rapidamente na companhia de Lily e Fabian. Tinha de reconhecer que, quisesse eu ou nao, estava uma vez mais exposto a velhas emocoes, a antigas lealdades, a lembrancas de prazeres distantes. Mas, mesmo que Pat estivesse livre para viajar, nao a podia imaginar aceitando as minhas relacoes com Fabian ou o seu ostensivo e luxuoso estilo de vida. A moca que doava uma parte do seu pequeno ordenado de professora para os refugiados de Biafra nao poderia aprovar a atitude daquele homem sentado a minha frente, servindo-se de caviar. Ou a minha atitude. Evelyn Coates seria uma candidata mais apropriada a fazer parte do nosso pequeno grupo, mas quem poderia dizer qual das Evelyn Coates apareceria – a mulher surpreendentemente vulneravel daquela ultima noite de domingo, no meu quarto de hotel, ou a mulher abrasiva que eu conhecera no coquetel de Hale e no jogo de poquer em Washington? Tinha tambem de levar em conta a possibilidade de que, de uma maneira ou de outra, eu e Fabian poderiamos ser desmascarados. Em nada favoreceria a sua carreira de advogada do governo se um dia ela fosse acusada de andar com um par de ladroes.

– Receio nao me lembrar de ninguem, assim de repente – falei.

Pareceu-me detectar a sombra de um sorriso no rosto de Lily.

– Lily – perguntou Fabian -, o que sua irma Eunice anda fazendo?

– Passando em revista os Coldstream Guards, em Londres – respondeu ela. – Ou a Guarda Irlandesa. Nao sei qual a guarnicao de servico no palacio.

– Voce acha que ela gostaria de fazer parte do nosso grupo?

– Acho – disse Lily.

– Acha que, se voce lhe mandar um telegrama, ela podera encontrar-se conosco amanha a noite no Hotel Baur au Lac, em Zurique?

– Provavelmente – respondeu Lily. – Eunice esta sempre pronta a viajar. Vou lhe telegrafar assim que voltarmos ao hotel.

– Voce concorda com a sugestao, Douglas?

– Por que nao? – Parecia-me a sugestao mais fria que eu ja ouvira, mas meus companheiros eram frios. Em Roma, se romano. Caviar e circo.

O maitre veio ate a nossa mesa dizer a Fabian que havia um telefonema para ele dos Estados Unidos.

– O que voce acha, Douglas? – perguntou Fabian, levantando-se da mesa. – Qual o minimo que voce esta disposto a aceitar? Podemos descer ate quarenta, se necessario?

– Isso e com voce – retruquei. – Nunca na minha vida vendi um cavalo.

– Nem eu. – Fabian sorriu. – Mas ha sempre uma primeira vez para tudo. – E seguiu o maitre.

O unico barulho, no terraco, era o dos dentes de Lily roendo sua torrada. Aquele barulhinho estava me pondo nervoso. Sentia que ela olhava especulativamente para mim.

– Foi voce – perguntou ela – quem quebrou o abajur na cabeca de Miles?

– Ele disse que fui eu?

– Disse que tinha havido um ligeiro mal-entendido.

– Por que nao deixamos as coisas assim?

– Como voce quiser. – Continuou a roer a torrada. – Voce lhe falou de Florenca?

– Nao. E voce?

– Nao sou idiota – respondeu ela.

– E ele suspeita?

– E demasiado orgulhoso para suspeitar.

– E o que vamos fazer agora?

– Esperar Eunice – disse Lily calmamente. – Voce vai gostar de Eunice. Tudo quanto e homem gosta. Por um mes, aproximadamente. Estou desejando ter ferias.

– Quando e que voce tem de voltar para Jock?

Ela olhou vivamente para mim.

– Como e que voce sabe a respeito de Jock?

– Deixe pra la – respondi. Ela me ferira empurrando-me para a irma e eu queria vingar-me de alguma maneira.

– Miles diz que nunca mais vai jogar bridge ou gamao. Voce sabe por que?

– Tenho uma ideia – respondi.

– Mas nao vai me contar.

– Nao.

– Miles e um homem complicado – disse ela. – Adora dinheiro, seja de quem for. Tome cuidado com ele.

– Obrigado. Terei.

Ela inclinou-se por cima da mesa e agarrou-me a mao.

– Adorei Florenca – disse, baixinho.

Por um torturante momento, quis agarra-la, pedindo-lhe que fugisse comigo.

– Lily!… – exclamei, repentinamente.

– Nao seja tao impressionavel, querido – disse ela, retirando sua mao. – Lembre-se sempre disso.

Fabian retornou, trazendo no rosto uma expressao grave.

– Tive que ceder – falou, sentando-se a mesa e servindo-se de mais caviar. – Chegamos aos quarenta e cinco mil. – Sorriu. – Acho que precisamos de uma boa garrafa de champanha.

Eu estava sentado no meu quarto de hotel, diante da grande secretaria de carvalho entalhado. Antes de entrar, dissera 'boa noite' a Lily e a Fabian, cuja suite ficava bem ao lado, dando tambem para o Mediterraneo. Lily beijara-me na face e Fabian apertara-me a mao.

– Durma bem – dissera ele. – Quero aproveitar a manha para mostrar-lhe algo, antes de partirmos para Zurique.

Estava me sentindo um pouco tonto de tanto champanha, mas nao tinha sono. Peguei numa folha do papel de carta do hotel e comecei a escrever, quase a esmo.

'Premio', escrevi, '- 20 000. Ouro – 15 000. Bridge e gamao – 36 000… Filme?'

Olhei para o que tinha escrito, semi-hipnotizado. Antes, mesmo quando ganhava bem na companhia de aviacao, nunca me dera ao trabalho de somar meu livro de cheques e nem sequer soubera ao certo o que tinha no bolso. Agora, estava decidido a manter uma contabilidade semanal. Ou, da maneira como as coisas iam, diaria. Tinha descoberto um dos maiores prazeres do dinheiro: o de soma-lo. Os numeros naquela folha davam-me uma satisfacao maior do que a que poderia alcancar se comprasse algo com o dinheiro que aqueles numeros representavam. Cheguei a pensar, momentaneamente, se aquilo poderia ser considerado como um vicio de que eu me devesse sentir envergonhado Mais tarde debateria isso.

Ouvi um som inconfundivel vindo do quarto ao lado e estremeci. Ate que ponto podia confiar em Fabian? Sua atitude para com o dinheiro, seu e dos outros, era pelo menos cavalheiresca. E nao havia nada no que eu sabia do seu carater e seu passado que sugerisse um compromisso formal com a honestidade fiscal. Nao podia deixar passar mais um dia sem exigir que legalizassemos nossa situacao por meio de um documento. Mesmo assim, sabia que teria de vigia-lo constantemente.

Quando finalmente adormeci, sonhei com meu irmao Hank, triste diante de suas maquinas de somar, lidando com o dinheiro dos outros.

Na manha seguinte, tivemos, finalmente, uma chance de conversar. Lily tinha hora marcada no cabeleireiro e Fabian disse que- queria levar-me ao Museu Maeght, em St. Paul-de-Vence.

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