era acurada. O filme seria dublado mais tarde, disse-me ele. De vez em quando, aparecia na tela um jovem de aspecto angelico, vestindo uma longa tunica enfeitada de peles e aparando sebes. Ocasionalmente, olhava tristemente para o vacuo. Tambem aparecia sentado numa poltrona dourada semelhante a um trono, numa grande sala de pedra iluminada por candelabros, assistindo a varias combinacoes dos sexos em pleno orgasmo. A sua expressao nunca mudava, embora a certa altura, quando a acao atingia o climax, ele languidamente colhesse uma rosa de cabo longo e a cheirasse. Lily, sentada do outro lado de Fabian, abafou uma risada.

– A historia e simples – explicou-me Fabian, num murmurio. – Tem lugar num pais da Europa central. O jovem da tunica e um principe. Alias, o titulo do filme e O Principe Adormecido. Ele acaba de desposar uma bela princesa estrangeira. Seu pai, o rei – essa parte vai ser filmada na semana que vem -, quer um herdeiro. Mas o rapaz e virgem. Nao esta interessado em mulheres. So em jardinagem.

– Isso explica a tesoura de jardinagem – disse eu, esperando que isso provasse que eu ainda me sentia capaz de falar.

– Claro – disse Fabian, com impaciencia. – A tia dele, representada por Nadine, foi encarregada pelo irmao, o rei, de estimular a libido do principe. Enquanto isso, a princesa recem-casada espera por ele, chorando numa das torres do castelo, deitada no leito nupcial por estrear, todo ele guarnecido de flores. Mas nada… e, como voce ve, sao apresentadas todas as atracoes possiveis… nada desperta o principe. A tudo ele assiste com olhos desinteressados. Todo mundo esta desesperado. Por fim, como ultimo recurso, a tia, Nadine, danca sozinha diante dele, numa roupa diafana, segurando uma rosa vermelha entre os dentes. O olhar do principe se anima. Senta-se, deixa cair a tesoura. Desce do trono. Toma a tia nos bracos. Danca com ela. Beija-a. Os dois caem juntos na grama. Amam-se. Todos prorrompem em vivas no castelo. O rei declara o casamento com a princesa anulado. O principe casa com a tia. No castelo e atras das moitas, ha Uma orgia de tres dias para comemorar. Nove meses mais tarde, nasce um herdeiro. Todos os anos, para celebrar a ocasiao, o principe e sua tia repetem a danca, nas suas vestimentas originais, enquanto os sinos da igreja repicam. Assim contado, e tudo bem iraniano, mas ha um encanto telurico. Ha ainda um enredo secundario, com um vilao que ambiciona o trono e tem uma tara por chicotes, mas nao vou me estender mais, por ora…

As luzes acenderam-se. Fingi um ataque de tosse para explicar o rubor das faces.

– Em termos gerais – falou Fabian -, esse e o filme. Tem tudo para agradar ao publico e aos intelectuais.

– Miles – disse Nadine Bonheur, passando rapidamente do seu papel de tia incestuosa para o de mulher de negocios. – Como e, voce gostou? O publico vai ficar tarado, nao?

– Uma beleza – declarou Fabian. – Vamos ganhar uma nota.

Evitei olhar para os outros, enquanto saiamos rumo ao elevador. Cuidei principalmente de nao olhar para a jovem americana, que aparecera em todas as cenas mais vergonhosas e que eu reconheceria, mesmo com um saco por cima da cabeca, em qualquer praia de nudistas deste mundo. Constatei que Lily tambem estava subitamente interessada no chao do elevador.

Enquanto desciamos os Champs-Elysees, a caminho de uma cervejaria alsaciana, Nadine tomou-me o braco.

– O que voce achou da mocinha? – perguntou. – Talentosa, nao?

– Demais – respondi.

– Ela nao e propriamente uma profissional – continuou Nadine. – So faz filmes para pagar seus estudos na Sorbonne. Esta estudando literatura comparada. As mocas americanas tem mais carater do que as europeias, voce nao acha?

– Nao posso dizer – retruquei. – Estou na Europa ha apenas umas semanas.

– Voce acha que o filme vai ser sucesso na America? – perguntou ela, num tom de voz preocupado.

– Estou muito otimista – respondi.

– Receio que o filme tenha demasiada classe para a plateia comum.

– Se fosse eu, nao me preocuparia – retruquei.

– Miles tambem acha – disse Nadine, apertando-me o braco por motivos ambiguos. – Ele e maravilhoso no sei. Tem sempre um sorriso para todo mundo. Voce tambem precisa aparecer no set. O ambiente e uma beleza. Um por todos e todos por um. E como eles trabalham! Horas extras, e nunca uma queixa. Naturalmente, os salarios sao muito pequenos, os astros recebem apenas uma porcentagem dos lucros, o que ajuda muito. Que tal aparecer amanha? Vamos filmar uma cena em que Priscilla esta vestida de freira…

– Vim a Paris a negocios – falei. – Estou tremendamente ocupado.

– Entao, venha outro dia qualquer. Sera sempre bem-vindo.

– Obrigado – falei.

– Acha que a censura americana vai deixar passar o filme? – perguntou ela, novamente preocupada.

– Imagino que sim. Pelo que ouco dizer, deixam passar tudo, hoje em dia. Ha sempre a chance, e claro, de que um chefe de policia local implique com o filme e mande fechar o cinema em que esteja sendo exibido. – Ao dizer isso, percebi que tambem tinha razoes para me preocupar. Se eu fosse um chefe de policia local, mandaria queimar o filme, mesmo contra a lei. Mas eu nao era um policial. Era, quisesse ou nao, um investidor. De quinze mil dolares. Procurei nao parecer preocupado. – E na Franca? – perguntei. – Sera liberado?

– Nunca se sabe – disse ela, apertando-me de novo o braco. – Um bispo gaga faz um sermao no domingo e, no dia seguinte, todos os cinemas podem fechar. E se a mulher do presidente ou de um ministro cisma com um cartaz… Voce nao tem ideia de como o povo frances e atrasado com respeito a arte. Felizmente, ha sempre um novo escandalo, a cada semana, para distrair a atencao dos burgueses. – De repente, ela parou, soltando-me o braco. Recuou dois passos e olhou-me dos pes a cabeca. – A olho nu – observou – voce parece muito bem-feito. Estarei errada?

– Costumava esquiar um bocado – falei.

– Ainda nao arranjamos ninguem para o papel do vilao – prosseguiu Nadine. – Ele tem duas cenas muito interessantes. Uma com Priscilla e outra com Priscilla e uma moca nubia… Talvez lhe agradasse.

– Ela esta lhe oferecendo trabalho, Douglas – disse Miles, sua voz ressoando no ruido do transito. – Proteja seu investimento.

– E muita gentileza de sua parte, madame – respondi a Nadine -, mas se minha mae, la nos Estados Unidos, visse o filme, receio que… – Senti vergonha de meter minha falecida mae no assunto, mas achei que era a maneira mais rapida de por fim a conversa.

– Priscilla tambem tem a mae na America – atalhou Nadine.

– Sim, mas nem todas as maes de la sao iguais. Eu sou filho unico – expliquei, bobamente.

– Ora, aceite o papel – disse Lily. – Eu ajudo voce a decorar as falas, no set. E poderiamos ensaiar as cenas mais dificeis no hotel.

– Sinto muito – respondi, furioso com ela. – Gostaria de aceitar, mas a qualquer momento posso ter que sair de Paris.

Nadine deu de ombros.

– O mal desses filmes – disse ela – e que as caras sao sempre as mesmas. Sempre o mesmo equipamento, sempre os mesmos orgasmos. Talvez numa outra ocasiao. Voce tem algo… uma sexualidade oculta, como um jovem padre… Nao acha Lily?

– Acho – confirmou Lily.

– Resultaria encantadoramente perverso – prosseguiu Nadine. – Inocentemente depravado. Os bispos rangeriam os dentes.

– Fica para outra vez – prometi.

– Vou cobrar de voce. – E Nadine lancou-me o seu incorruptivel sorriso de colegial.

Os dois chopes que tomara, um logo apos o outro, pareciam ter estimulado o critico barbudo. Pos-se a falar excitadamente em frances com Nadine.

– Philippe – pediu ela -, fale em ingles. Temos convidados.

– Estamos na Franca, nao estamos? – retrucou Philippe em voz bem alta, por entre a barba. – Por que eles nao hao de falar frances?

– Porque somos uns anglo-saxoes estupidos, meu caro – respondeu Lily. – E, como todo frances sabe, mal-educados.

– Ele fala ingles muito bem – disse Nadine. – Muito bem. Esteve dois anos na America. Em Hollywood. Escrevia criticas para os Cahiers du Cinema.

– Gostou de Hollywood? – perguntou Fabian.

– Detestei.

– E os filmes?

– Detestei.

– Gosta dos filmes franceses? – perguntou Lily.

– O ultimo de que eu gostei foi Acossado – respondeu Philippe, emborcando a cerveja.

– Isso foi ha dez anos – disse Lily.

– Mais – corrigiu Philippe.

– Ele e muito exigente – explicou Nadine. – E tambem politico.

– Quantas e quantas vezes – disse ele furioso, virando-se para ela – eu ja lhe disse que as duas coisas sao inseparaveis?

– Demasiadas vezes. Nao seja emmerdeur [2], Philippe. Ele simpatiza com a China – explicou-nos Nadine.

– Gosta de filmes chineses? – perguntou Lily, que parecia deliciar-se em provocar o homem, no seu jeito tranquilo de dama.

– Nao vi nenhum… ainda – respondeu o homem. – Estou esperando. Ha cinco, ha dez anos. – Seu ingles, apesar da pronuncia estrangeira e das incorrecoes, era fluente. Seus olhos coruscavam. Era o tipo do sujeito que seria capaz de discutir ate em sanscrito. Tive a impressao de que, se alguma vez encontrasse alguem que concordasse com ele, sairia furioso da sala.

– Escute aqui, meu velho – disse Fabian, num tom de voz cordial. – O que voce achou do nosso filmezinho, ate agora?

– Une merde.

– E mesmo? – Lily fingiu surpresa.

– Philippe – avisou Nadine. – Priscilla entende frances. Voce nao quer desencoraja-la, quer?

– Nao faz mal – disse Priscilla, na sua voz de soprano do oeste americano. – Eu nunca levo a serio o que um frances diz.

– Estamos na cidade onde Racine apresentou Phedre, onde Moliere morreu – recitou o critico. – Onde Flaubert foi ao tribunal defender Madame Bovary, onde houve tumulto nas ruas apos a primeira apresentacao de Hernani, onde Heine foi aplaudido pela sua poesia em outra lingua e Turgueniev encontrou uma segunda patria, – A barba de Philippe estava eletrizada pela discussao, os grandes nomes escorriam-lhe, deleitosos, da lingua. – No nosso tempo e no mesmo campo, o cinema, temos a nosso credito pelo menos A grande ilusao, Pega-Fogo, Brinquedo proibido. Mas esta noite nos reunimos para discutir o que? Uma tentativa comica e de mau gosto de despertar as nossas mais baixas emocoes…

– Nao queira dar a impressao, cheri – interveio Nadine, calmamente -, de que voce e por demais superior para trepar. Eu podia testemunhar contra.

O critico olhou para ela furioso e fez sinal para que lhe trouxessem outro chope.

– O que voces me mostraram? Os cios de uma insossa poupee [3] americana e de um caften marroquino, os…

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