recoloquei o fone no gancho. 'Que se vai fazer?', pensei.

Voltei ao bar, peguei minha bebida e, dez minutos mais tarde, estava na cama. Sozinho.

O nome do cavalo era Reve de Minuit. Eu, Fabian e Lily estavamos com Coombs, o treinador, em meio a neblina da manha, numa das aleias da floresta de Chantilly, assistindo ao exercicio dos cavalos. Eram sete da manha e fazia frio. Meus sapatos e a bainha das minhas calcas estavam enlameados e molhados. Eu estava metido no meu velho sobretudo esverdeado, o mesmo dos tempos do St. Augustine, e sentia-me ridiculamente vestido para estar ali, no meio dos bosques, rodeado pelo cheiro da folhagem molhada e dos cavalos suados. Fabian, sempre pronto para enfrentar qualquer situacao, usava botas de montaria, um elegante blusao impermeavel sobre o paleto quadriculado e uma calca de veludo cotele. Um bone de tweed cobria-lhe a cabeca e seu bigode estava umido de orvalho. Parecia que o alvorecer era a sua hora predileta e que durante toda a sua vida fora dono de puros-sangues. Qualquer pessoa que o visse ali teria certeza de que nenhum treinador seria capaz de lhe passar a perna.

Lily tambem estava vestida para a ocasiao, com botas altas e um casaco solto, a cutis inglesa realcada pelo ar umido da floresta. Se eu pretendesse permanecer na companhia deles – e a essa altura parecia-me dificil desvencilhar-me – teria que arrumar um novo guarda-roupa.

Coombs, um velho baixinho, vermelho e de ar astuto, de botas e com uma voz roufenha, indicara-nos o nosso cavalo. Achei-o parecido com qualquer outro cavalo castanho, com grandes olhos espantados e pernas aparentemente finas demais.

– O potro esta se recuperando muito bem – disse Coombs.

Nisso, tivemos de nos esconder atras de umas arvores, pois um dos outros cavalos comecou a correr de costas na nossa direcao, quase tao depressa quanto correra para a frente. – Ficam um pouco nervosos, nestas manhas frias – explicou Coombs, indulgentemente. – Aquela eguinha ali so tem dois anos. Ainda gosta de brincar.

O cavalarico conseguiu, finalmente, controlar o bicho e nos pudemos sair de tras das arvores.

– Como vao os cascos dele, Jack – perguntou Fabian. O connaisseur de pintura e escultura, que me servira de guia no Louvre e que discursara sobre Monet para o critico na noite anterior, fora agora substituido por um entendido em cavalos.

– Ora, se fosse eu, nao me preocupava – disse Coombs. – Ele esta se recuperando esplendidamente.

– Quando e que podera correr? – perguntei, falando pela primeira vez desde que fora apresentado ao treinador. – Isto e, numa corrida para valer?

– Bem – comecou Coombs, abanando ambiguamente a cabeca. – Bem, isso ja sao outros quinhentos. O senhor nao vai querer puxar pelo potro, vai? Nao esta vendo que ele ainda nao esta cem por cento? – Sua maneira de falar ingles era tipicamente irlandesa, para alguem cuja familia se estabelecera na Franca desde os tempos da Imperatriz Josefina.

– Acho que mais duas semanas de treino nao lhe fariam nenhum mal – sentenciou Fabian.

– Ele ainda parece estar sentindo a pata dianteira – disse Lily.

– Ah, a senhora notou! – falou Coombs, sorrindo para ela. – E mais psicologico do que outra coisa, entende?

– Eu sei – concordou Lily. – Nao e a primeira vez que vejo um caso desses.

– Ah, e uma satisfacao falar com entendidos – disse Coombs, sorrindo ainda mais.

– Pode nos dar uma data aproximada? – teimei, lembrando-me dos seis mil dolares investidos em Reve de Minuit. – Duas semanas, tres semanas, um mes?

– Nao gosto que me ponham a corda no pescoco – falou Coombs, sacudindo novamente a cabeca. – Nao gosto de alimentar as esperancas de um proprietario para depois ter que desaponta- lo.

– Mesmo assim, o senhor podia fazer um calculo – insisti.

Coombs olhou fixo para mim, seus olhinhos cinzentos, cercados por milhares de rugas, de repente gelados.

– E, eu podia fazer um calculo. Mas nao vou. Ele e que vai me dizer quando estiver pronto para correr. – Sorriu jovialmente, o gelo em seus olhos derretendo-se. – Bem, acho que ja vimos bastante por hoje, nao acham? Agora, vamos tomar um bom cafe, senhora… – E ofereceu galantemente o braco a Lily.

– Voce precisa ter cuidado com esses sujeitos, Douglas – disse-me Fabian em voz baixa, enquanto seguiamos Coombs e Lily por um atalho na floresta. – Eles sao muito sensiveis. Este e um dos melhores que ha. E uma sorte te-lo conseguido. Voce tem que deixa-los marcar as datas.

– Mas o cavalo e nosso, nao e? Os seis mil sao nossos.

– Eu nao falaria assim onde ele me pudesse ouvir. Ah, que belo dia vai fazer! – Estavamos saindo da floresta e o sol rompia atraves da neblina, brilhando no pelo dos cavalos, que voltavam a passo para as baias. – Tudo isto nao lhe faz bem? – disse Fabian, abrindo os bracos num gesto largo. – Esta linda paisagem, este sol matinal, estes belos e delicados animais…

– Delicados uma ova! – observei, grosseiramente.

– Estou muito otimista – disse Fabian. – Vou ate arriscar uma previsao. Ainda vamos fazer nome nas pistas. E nao apenas com um potro de seis mil dolares. Espere, que voce ainda acabara vindo a Chantilly ver vinte cavalos seus treinando. Ainda acabara sentado nas sociais em Longchamp vendo as suas cores ganharem corridas… Espere so…

– Vou esperar – retruquei, sombrio. Mas, embora nao quisesse demonstrar, tambem eu me sentia atraido por aquele lugar, pelos cavalos e pelo velho treinador. Nao tinha o mesmo entusiasmo maniaco de Fabian, mas sentia-me tocado pela forca do seu sonho.

Se especular com ouro e arriscar enormes quantias em loucos filmes pornograficos escritos por um iraniano e estrelados por uma ninfomana oriunda do centro-oeste americano e estudante de literatura comparada na Sorbonne pudessem garantir trinta manhas por ano como aquela, eu de bom grado obedeceria a Fabian. Por fim, o dinheiro que eu roubara resultara em algo de concretamente bom. Respirei profundamente o ar puro e frio do campo antes de entrar para tomar o cafe da manha na comprida mesa da sala de jantar dos Coombs, cujas paredes e prateleiras estavam tranquilizadoramente cobertas de tacas e placas que a sua coudelaria recebera atraves dos anos. O velho serviu-nos uma generosa dose de Calvados antes de nos sentarmos a mesa com sua gorda e rosada esposa, e oito ou nove joqueis e cavalaricos. O aroma do cafe e do bacon mesclava-se ao cheiro de arreios e botas. Era o mundo mais simples e saudavel que eu jamais pudera imaginar que ainda existia, e quando Coombs me piscou o olho do outro lado da mesa e me disse: 'Ele e que vai me dizer quando estiver com vontade de correr', eu pisquei tambem e ergui a minha caneca de cafe a saude do velho treinador.

CAPITULO XIV

– Acho que esta na hora de pensarmos em dar um pulo ate a Italia – disse Fabian. – 0 que voce acha da Italia, querida?

– Adoro – respondeu Lily.

Estavamos num restaurante chamado Chateau Madrid, no alto de um penhasco sobre o Mediterraneo. As luzes de Nice e das localidades costeiras, la embaixo, piscavam a luz lilas do anoitecer. Estavamos tomando champanha, enquanto esperavamos que nos trouxessem o jantar. Tinhamos tambem bebido uma quantidade consideravel de champanha no train bleu em que vieramos de Paris, na noite anterior. Eu estava comecando a gostar do Moet et Chandon. O velho Coombs viera conosco no trem e passara em nossa companhia quase toda a tarde. Apos mais de duas semanas de exercicios, Reve de Minuit dissera finalmente ao treinador que estava pronto para correr. E como correra! Ganhara por pescoco, nessa tarde, no quarto pareo das corridas de Cagnes, um hipodromo nos arredores de Nice. O premio fora de cem mil francos, quase vinte mil dolares. Jack Coombs correspondera a sua fama de saber escolher as corridas. Infelizmente, tivera de voar de volta a Paris logo apos o pareo, privando-nos do prazer da sua companhia ao jantar. Eu estava curioso de ver quantas garrafas de champanha, entrecortadas de doses de conhaque, o velho podia consumir num dia inteiro.

Tinhamos tambem apostado quinhentos francos em Reve de Minuit, a seis contra um. 'Por motivos sentimentais', explicara Fabian, quando nos dirigiamos para o guiche. Em Nova York, eu jogava minha subsistencia em cada aposta de dois dolares. Evidentemente, como principio, o sentimento era mais lucrativo do que a sobrevivencia, numa corrida de cavalos.

De regresso ao nosso hotel em Nice, a fim de nos vestirmos para jantar, Fabian ligara para Paris e Kentucky. De Paris, ficara sabendo que O Principe Adormecido fora concluido nessa mesma tarde e que, apos uma exibicao do copiao ainda incompleto, na noite anterior, representantes de distribuidores para a Alemanha Ocidental e o Japao ja tinham feito ofertas substanciais.

– Mais do que o suficiente – disse-me Fabian, com satisfacao – para cobrir nosso investimento. E ainda falta o resto do mundo. Nadine nao cabe em si de contente. Esta ate pensando em comecar um filme 'limpo'. – Como se um assunto puxasse o outro, comunicou-me que o preco do ouro subira cinco pontos, nesse dia.

Seu amigo de Kentucky ficara impressionado com a noticia da vitoria de Reve de Minuit, mas queria consultar um socio antes de fazer uma oferta definitiva. Telefonaria mais tarde, para o restaurante.

O champanha, a vista, o triunfo daquela tarde, o preco do ouro, as noticias de Nadine, o menu de um esplendido jantar, a companhia de Lily Abbott, sentada entre nos dois em toda a sua beleza, faziam-me sentir uma enorme simpatia por todo o mundo e uma amizade toda especial pelo homem que roubara a minha mala no aeroporto de Zurique. Inimigos e aliados, eu estava descobrindo, como nos filmes em que entravam alemaes e japoneses, eram entidades misturaveis.

Se Reve de Minuit nao tivesse ganho, acho que eu teria jogado Fabian no mar, dos trezentos metros de altura em que nos encontravamos. Mas o cavalo vencera e olhei com simpatia para o bonito rosto do homem a minha frente.

– Voce sugeriu algum preco ao seu amigo de Kentucky? – perguntei.

– Por volta de cinquenta – respondeu Fabian.

– Cinquenta o que?

– Mil dolares – disse ele, levemente irritado.

– Voce nao acha que e um pouco exagerado para um cavalo de seis mil dolares? – falei. – Nao nos convem assusta-lo.

– A verdade, Douglas – e Fabian tomou um gole de champanha -, e que ele nao e um cavalo de seis mil dolares. Preciso confessar-lhe uma coisa: paguei quinze mil por ele.

– Mas voce me disse…

– Eu sei, eu sei. Achei que seria melhor nao o assustar demasiado. Se voce duvida de mim, posso mostrar-lhe a conta.

– Ja nao duvido de voce – retruquei. E era quase verdade. – E os quinze mil dolares investidos no filme? Devo multiplica-los por mais tambem?

– Nao. Palavra de honra, meu velho. – Ergueu o copo. – Vamos brindar a Reve de Minuit. – Todos nos brindamos entusiasticamente. Eu me afeicoara ao animal desde que o vira avancar em atropelada na reta final e dissera a Fabian que nao gostaria de vende-lo.

– Acho que voce tem instintos de falido, meu amigo – retrucara Fabian. – Voce ainda nao e suficientemente rico para gostar tanto de cavalos a ponto de nao querer vende-los. Esse sentimento exagerado de posse tambem se aplica a sua atitude para com as mulheres. – E olhou para Lily. Em Paris, houvera um clima de tensao entre eles. Fabian tivera demasiadas conferencias comerciais com Nadine, a horas mortas. Quanto a mim, evitara ir ao estudio onde o filme estava sendo feito e nunca mais vira nenhuma das pessoas que trabalhavam nele. O sinal de ocupado no telefone ainda nao fora esquecido.

– Sabem o que vamos fazer? – perguntou Fabian. – Comprar um carro. Voces tem alguma objecao ao Jaguar?

Nem eu nem Lily tinhamos qualquer coisa contra o Jaguar.

– Um Mercedes daria muito na vista – continuou ele. – Nao vamos querer parecer nouveaux-riches

Вы читаете Plantao Da Noite
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату
×