– Cheri – atalhou novamente Nadine, agora num tom de voz mais severo. – Lembre-se de que voce esta sempre firmando abaixo-assinados contra o racismo.
– Nao faz mal, Nadine – disse Priscilla, entre duas colheradas de um enorme sundae coberto de calda de chocolate. – Nunca levo a serio o que os franceses dizem.
O marroquino sorria benevolamente, seu ingles sem duvida pobre demais para seguir o que se dizia.
– Made in France – prosseguiu o critico. – Escrito na Franca, composto na Franca, pintado na Franca… Voce se lembra… – E apontou um dedo acusador para Nadine. – Peco-lhe que se lembre do que isso significa. A gloria. Devocao a beleza, a arte, as mais altas aspiracoes da raca humana. E o que significa o seu 'made in France'? Uma titilacao nos testiculos, uma lubricidade da vagina…
– Oba, oba! – exclamou Lily.
– A tipica leviandade inglesa – disse o critico, inclinando -se por sobre a mesa, a barba tremendo furibundamente na direcao de Lily. – O imperio foi-se. Agora, emitiremos uma casquinada do Palacio de Buckingham.
– Meu velho – disse Miles em tom amigavel -, se me permite, acho que voce esta confundindo as coisas.
– Se me permite – retrucou Philippe -, acho que nao estou confundindo nada.
– Para inicio de conversa, a nossa intencao e apenas ganhar os tubos – disse Miles. – E, pelo que tenho ouvido dizer, isso nao e inteiramente contra o serio e austero carater frances.
– Isso nada tem a ver com o carater frances, e sim com o capitalismo que ora domina a Franca. Sao duas coisas muito diferentes, monsieur.
– Muito bem – concordou Fabian. – Vamos por o dinheiro de lado, por enquanto. Muito embora, se me permite lembrar-lhe, a maioria dos filmes pornograficos e tambem os mais… explicitos… provenham da Suecia e da Dinamarca, dois paises socialistas, se nao estou errado.
– Escandinavos – retificou o critico. – Uma parodia do termo 'socialismo'. Cago nesse socialismo.
– Voce e duro de roer, Philippe – disse Fabian, com um suspiro.
– Tenho as minhas definicoes – falou Philippe. – Defino o socialismo.
– La vem a China de novo – gemeu Nadine.
– Nao podemos viver todos na China, podemos? – perguntou Fabian, sempre razoavel. – Gostemos ou nao, vivemos num mundo que tem uma historia diferente, gostos diferentes, diferentes necessidades…
– Cago para um mundo que precisa de merda como a que vimos esta noite. – Philippe mandou vir outro chope. Quando chegasse aos quarenta, teria uma barriga igual a um barril.
– Fui esta tarde ao Louvre com meu amigo – disse Fabian, fazendo um gesto em minha direcao. – E ontem deliciei-me com uma visita ao
– Nao preciso que me descrevam os museus de Paris, monsieur – disse Philippe com frieza.
– Desculpe – retrucou Fabian. – Diga-me uma coisa, voce e contra as obras de arte desses museus?
– Nem todas – falou Philippe, relutantemente. – Nao.
– Os nus, as figuras se abracando, as madonas opulentas, as deusas prometendo toda especie de prazeres carnais aos pobres mortais, os belos mancebos, as princesas reclinadas… Voce e contra isso?
– Nao percebo ate onde o senhor quer chegar – disse Philippe, salpicando a barba de cerveja.
– O que estou querendo dizer – falou Fabian, todo paciencia e bonomia – e que, atraves da nossa civilizacao, os artistas sempre apresentaram objetos de desejo sexual, sob uma ou outra forma, sagrada, profana, baixa, elevada. Por exemplo, ontem, no
– Conheco o quadro – interrompeu Philippe. – Prossiga, por favor.
– Evidentemente – disse Fabian, triunfante -, Monet nao queria que quem olhasse para o quadro achasse que nada acontecera antes e que nada aconteceria depois daquele momento. A impressao que eu tenho, pelo menos, e de uma deliciosa familiaridade, com todas as suas conotacoes… Esta me acompanhando?
– Estou entendendo – disse Philippe, com aspereza. – Mas nao sei aonde o senhor quer chegar.
– Talvez – disse Fabian -, se Monet tivesse tido tempo, teria pintado algumas cenas do que havia acontecido antes e do que iria acontecer depois do momento que ele captou no quadro. E essas cenas poderiam nao ser tao diferentes assim de algumas daquelas que vimos esta noite. Podemos dizer que Nadine talvez nao seja tao grande artista quanto Monet e que Priscilla pode nao ser tao eternamente atraente quanto as damas da tela, mas, a sua maneira modesta, o filme de Nadine tem as mesmas raizes que o quadro de Monet.
– Bravo! – aplaudiu Nadine. – Ele esta sempre querendo trepar comigo ao ar livre. Nao negue, Philippe. Lembra-se da Bretanha, no verao passado? Toda aquela areia entre as minhas pernas.
– Eu nao nego nada – disse Philippe, furioso.
– Sexo, amor, qualquer que seja o nome – prosseguiu Fabian -, nunca e apenas carne. Ha sempre um elemento de fantasia no meio. Cada epoca espera dos seus artistas as fantasias que aprofundam, melhoram ou mesmo tornam possivel o ato sexual. Nadine, sempre a sua maneira modesta… desculpe-me, querida… – Inclinou-se e acariciou a mao de Nadine a maneira de um pai. – Nadine esta procurando enriquecer as fantasias dos seus contemporaneos. Nesta epoca de trevas, de ausencia de alegria e de imaginacao, acho que ela deveria ser aplaudida, e nao criticada.
– Esse ai e capaz de convencer qualquer um – falou Lily.
– Concordo plenamente – falei, lembrando-me da serie de coisas de que Fabian me convencera, no espaco de apenas uma tarde. De repente, ocorreu-me que ele deveria ser um advogado expulso da Ordem… sem duvida, por algum motivo muito forte.
– Um dia, monsieur – falou Philippe, com dignidade -, gostaria de discutir com o senhor na minha lingua. Em ingles, levo desvantagem. – Levantou-se. – Tenho que acordar cedo, amanha. Pague a conta, Nadine, e vamos procurar um taxi.
– Pode deixar, Nadine – disse Fabian, embora ela nao tivesse sequer esbocado um gesto na direcao da bolsa. – Nos pagamos a despesa. – O plural nao me passou despercebido. – E obrigado por uma noitada extremamente agradavel.
Todos nos levantamos, e Nadine beijou Fabian em ambas as faces, mas limitou-se a me dar a mao. Fiquei um pouco desapontado. O filme fizera o seu efeito em mim, apesar dos rubores. O contato dos seus labios teria sido estimulante. Nao sabia como o rapaz marroquino, que filmara com ela, sem duvida voluntariamente, pelo menos duas longas cenas, podia ficar ali tranquilamente vendo-a ir embora com outro homem. Atores, pensei, gente capaz de se dividir em compartimentos.
– Voce mora perto daqui? – perguntou Fabian a Srta. Dean.
– Mais ou menos.
– Talvez queira que a acompanhemos ate sua casa.
– Nao, obrigada, nao vou ja para casa – respondeu Priscilla. – Tenho um encontro com meu noivo. – Estendeu-me a mao. – Ate logo, vejo voce na igreja – disse-me ela. Senti um bolinho de papel na minha mao e, pela primeira vez, olhei bem para ela. Havia um pouquinho de chocolate no canto de sua boca, mas seus olhos eram de um profundo azul-mar, com a mare subindo rapidamente e trazendo a tona incalculaveis tesouros submersos.
– Ate logo – murmurei e fechei a mao sobre o pedacinho de papel, enquanto ela se afastava.
Uma vez fora da cervejaria, na avenida banhada pelo ar suavemente umido da noite de Paris em fevereiro, depois de nos termos despedido de Priscilla, do marroquino e do camara, enfiei a mao no bolso em que tinha jogado o pedacinho de papel. Desenrolei-o e, a luz de um lampiao, vi que havia um numero de telefone escrito nele. Guardei de novo o pedaco de papel no bolso e corri atras de Fabian e de Lily, que iam andando a minha frente.
– Que tal, satisfeito por estar em Paris, Douglas? – perguntou Fabian.
– Foi um dia cheio – retruquei. – E muito educativo.
– Pois foi apenas o comeco – disse Fabian. – Voce ainda tem muita coisa para ver, meu amigo.
– Voce acredita em tudo aquilo que falou? – perguntei. – Nadine, Moriet, etc?
– Quando comecei a falar – explicou ele, rindo – estava so reagindo, como sempre reajo quando ouco um frances comecar a discursar sobre Racine, Moliere e Victor Hugo. Mas, no fim, ja quase me convencera de que eu era um patrono das artes. O que tambem inclui voce, bem entendido – acrescentou, depressa.
– Voce nao vai por o seu nome… o nosso nome… no filme, vai? – perguntei, subitamente alarmado.
– Nao – respondeu Fabian, quase com pena. – Acho que isso seria ir demasiado longe. Vamos ter que arranjar um nome para a companhia. Tem alguma ideia, Lily? Voce sempre foi inteligente.
– Producoes Por Cima e Por Baixo – falou Lily.
– Nao seja vulgar, querida – replicou Fabian. – Nao se esqueca de que vamos querer uma critica no Times. Vamos ter que pensar no caso a calma luz do dia. Por falar nisso, Douglas, procure dormir bem. Vamos ter que acordar as cinco da manha para ir a Chantilly assistir aos exercicios.
– Que exercicios? – Eu nao tinha a menor ideia de onde ficava Chantilly e, por um momento, pensei que talvez fosse um lugar onde os atores de filmes pornograficos mantivessem a forma. Pelo que tinha visto nessa noite, um dia de filmagem envolvia, tanto para o homem quanto para a mulher, o mesmo desgaste fisico que dez assaltos com um campeao peso-galo.
– Do nosso cavalo – respondeu Fabian. – Havia um telegrama para mim na recepcao quando voltamos do Louvre, esta tarde… por falar nisso, voce gostou da visita ao Louvre, nao gostou?
– Gostei. Mas que dizia o telegrama?
– Era do meu amigo de Kentucky. Parece que ele descobriu que o cavalo esteve doente e, no momento, diz que nao pode compra-lo…
– Puxa vida! – exclamei.
– Nao fique preocupado, meu caro – disse Fabian. – Meu amigo quer que o cavalo entre numa corrida importante, antes de investir o seu dinheiro. Voce nao pode culpa-lo, pode?
– Nao. Mas posso culpar voce.
– Receio que estejamos iniciando o nosso relacionamento com base na nota errada, Douglas – disse Fabian, ofendido.
– Teremos apenas que explicar as coisas ao treinador. Ele tem grande fe nesse cavalo. So precisa e certificar-se de que o animal esta em forma e escolher o pareo certo para inscreve-lo. O nome do treinador e Coombs. Um nome ingles, mas a familia dele estabeleceu-se em Chantilly no tempo da Imperatriz Josefina. Ele e um mago na escolha das corridas. Tem ganho pareos com animais que ja iam ser vendidos para puxar carrocas. De qualquer maneira, voce vai adorar Chantilly. Ninguem que goste de cavalos pode ir a Paris sem ir a Chantilly.
– Mas eu nao gosto de cavalos – falei. – Detesto cavalos. Tenho um medo louco deles.
– Ah, Douglas! – disse Fabian, quando chegamos ao hotel. – Voce ainda tem muito, muito que aprender. – Bateu-me no ombro, como se fossemos velhos camaradas. – Mas voce chega la, eu lhe garanto.
Subi ao meu quarto, olhei para a cama, ja aberta, e depois para o telefone. Lembrei-me de algumas das cenas do filme que vira naquela noite e decidi que nao estava com sono. Desci ao bar e pedi um uisque com soda. Bebi-o lentamente e depois tirei do bolso o pedaco de papel que Priscilla Dean pusera na minha mao e estendi-o diante de mim, sobre o bar.
– Voces tem telefone aqui? – perguntei ao garcom.
– La embaixo – respondeu ele.
Desci, dei o numero a telefonista, entrei na cabina que ela me indicou e tirei o aparelho do gancho. Apos um momento de silencio, deu sinal de ocupado. Esperei trinta segundos e depois