demasiado velho para isso. Dinheiro… – Pronunciou a palavra como se fosse um simbolo num problema de matematica que precisasse ser resolvido. – Para se tirar o maximo de prazer do dinheiro, o melhor e nao ter que pensar nele a toda hora. Nao precisar continuar a ganha-lo, pelo proprio esforco ou pela sorte. No nosso caso, isso significaria investir nosso capital de modo a garantir-nos uma renda confortavel ano apos ano. Por falar nisso, Douglas, qual a sua ideia de uma renda anual confortavel?

– Quinze, vinte mil dolares – respondi.

– Ora, homem, seja mais ambicioso! – exclamou ele, rindo.

– Quanto voce diria?

– No minimo, cem mil – disse ele.

– Isso vai exigir algum trabalho – retruquei.

– Sem duvida. E acarretar alguns riscos. De vez em quando, tambem vai exigir coragem. E, aconteca o que acontecer, nada de recriminacoes. Nem de punhais.

– Nao se preocupe – falei, esperando parecer mais confiante no futuro do que realmente estava.

– Compartilharemos todas as decisoes – disse Fabian. – Que isto seja uma advertencia para ambos.

– Compreendo. Miles – aproveitei -, gostaria de ter um documento escrito.

Ele me olhou como se eu o tivesse esbofeteado.

– Douglas, meu filho… – disse ele, com ar ofendido.

– Ou voce aceita isso – impus – ou eu caio fora.

– Voce nao confia em mim? – perguntou ele. – Nao tenho sido honesto com voce?

– Depois que lhe acertei a cabeca com o abajur – respondi. Por questao de tato, nao trouxe a baila o cavalo de seis mil dolares, que na verdade custara quinze mil. – Bem, o que voce prefere?

– Quando se poe no papel um acordo, sempre resultam feias diferencas de interpretacao. Instintivamente, detesto documentos. Prefiro um simples e varonil aperto de mao. – Estendeu a mao para mim por cima da mesa, mas nao o imitei. Ta que voce insiste… – Retirou a mao. – Em Zurique, poremos tudo em linguagem legal. Espero que nenhum de nos se arrependa. – Olhou para o relogio. – Lily deve estar a nossa espera para almocar. – Levantou-se. Puxei da minha carteira para pagar o vinho, mas ele me deteve e jogou algumas moedas em cima da mesa. – Permita-me o prazer – falou.

CAPITULO XV

– Pronto, esta feito – disse Fabian, quando saiamos do escritorio do advogado para a neve semiderretida das ruas de Zurique. – Agora estamos ligados pelas correntes da lei. – O contrato que fizeramos acabava de ser legalizado e o advogado prometera passar a nossa sociedade para o Liechtenstein dentro de um mes. Eu descobrira que o Liechtenstein, onde nao ha impostos e onde as rendas das companhias sao como segredos de Estado bem guardados, exercia uma irresistivel atracao sobre os advogados.

Embora a sociedade fosse formada por Fabian e por mim, com participacao igual, por uma razao qualquer relacionada com os meandros da lei suica, o advogado nomeara-se a si proprio presidente da companhia. Tinhamos de escolher um nome para a firma e eu sugeri 'Augustine Investimentos Cia. Ltda.' Ninguem votou contra. Pagamos varias despesas relativas a legalizacao.

Fabian galantemente fizera questao de incluir no contrato a clausula garantindo-me o direito de retirar os meus setenta mil dolares originais ao fim de um ano. Tinhamos ido ao banco onde Fabian ja mantinha conta e abrimos uma conta conjunta, para que nenhum de nos pudesse tirar dinheiro sem o consentimento do outro.

Cada um de nos depositou cinco mil dolares em nosso nome numa conta corrente do Union Bank of Switzerland.

– Para as pequenas despesas – disse Fabian.

Se um de nos morresse, todo o capital da companhia e o dinheiro no banco ficariam para o sobrevivente.

– E um bocado macabro, bem sei – comentou Fabian, quando eu li a clausula. – Mas nao se pode ser reticente em assuntos destes. Caso voce estiver mal-impressionado, Douglas, lembre-se de que sou bem mais velho do que voce e, por conseguinte, devo deixar este mundo antes.

– Eu sei – repliquei. So nao lhe disse que a clausula tambem lhe podia dar a tentacao de jogar-me de um precipicio abaixo ou de envenenar-me a sopa. – Sim, acho o contrato muito justo.

– Que tal, esta satisfeito agora? – perguntou Fabian, enquanto davamos a volta a um charco. – Sente-se protegido?

– De tudo – respondi -, menos do seu otimismo. – Havia seis dias que estavamos em Zurique, sob um ceu cinza e triste e, nesses seis dias, Fabian comprara mais vinte mil dolares em ouro, aplicara no mercado de acucar, fora duas vezes a Paris e adquirira tres litografias abstratas de um artista do qual eu nunca ouvira falar, mas que nos proximos dois anos, segundo ele, iria 'explodir'. Conforme me dissera, nao gostava de deixar o dinheiro parado.

Fabian discutira todos os investimentos comigo e me explicara pacientemente o funcionamento dos diversos mercados, onde as flutuacoes eram tao imprevisiveis que se podiam fazer ou perder fortunas no espaco de uma tarde e onde ganharamos muito dinheiro entre a quinta e a sexta-feira. Eu entendia ou fingia entender as nossas operacoes, mas, quando ele me pedia opiniao, tinha de deixar as decisoes a seu criterio. Sentia vergonha da minha ingenuidade e lembrava-me de quando era crianca e o professor de matematica me fazia uma pergunta que todos na classe sabiam responder, menos eu. Tudo me parecia tao complicado e perigoso, que eu nem sabia como conseguira sobreviver durante trinta e tres anos no mesmo mundo que Miles Fabian habitava.

Ao fim de seis dias, eu nao tinha mais a certeza de poder aguentar o desgaste diario dos meus nervos. Todas as manhas as palmas das minhas maos ficavam cobertas de suor frio.

Quanto a Fabian, nada parecia preocupa-lo. Quanto maiores os riscos que assumia, mais sereno ficava. Se havia algo que eu gostaria de aprender com ele, era isso. Pela primeira vez desde os tempos de crianca, comecei a sentir o estomago. Enquanto tomava Alka-Seltzer apos Alka-Seltzer, tentava convencer-me de que nao eram os nervos, e sim a comida demasiado substanciosa que nos serviam duas vezes por dia nos melhores restaurantes da cidade, mais os vinhos que Fabian escolhia. Porem, nem ele nem Lily, nem a irma dela, Eunice, se queixavam de nada, mesmo depois de um jantar no Kronenhalle, monumento suico a cozinha e a digestao helveticas, onde tinhamos comido truta defumada, lombo de veado com Spatzle e molho de murtinho, tudo isso acompanhado primeiro de uma garrafa de Aigle e, depois, de um pesado Borgonha, e seguido por porcoes de queijo Vacherin e um souffle de chocolate.

Estava tambem comecando a me preocupar com o peso, pois as calcas me apertavam na cintura. Lily parecia nao aumentar nem um grama, embora comesse mais do que eu ou Fabian. Eunice, que era gordinha, permanecia gordinha. E Fabian, como por milagre, estava emagrecendo e ficando ainda mais elegante, como se a subita injecao de dinheiro lhe tivesse feito bem ao metabolismo. Por mais que comesse e bebesse, seus olhos continuavam limpidos, sua pele rosada e saudavel, seu andar agil, seu bigode cheio de virilidade. Os generais que tinham passado anos e anos de obscuridade em tempos de paz deviam reagir da mesma forma, quando subitamente postos a comandar exercitos e a planejar batalhas. Olhando para ele, tive o sombrio pressentimento de que, semelhante a um soldado, eu e que iria sofrer por nos dois.

Eunice era uma moca bonita e agradavel, com nariz arrebitado, vulneraveis olhos azuis, um colorido que lembrava um prado na primavera, um salpico de sardas, uma silhueta que teria sido mais apreciada no tempo da Rainha Vitoria do que na decada de 70, e uma maneira de falar suave, quase hesitante, resultado quase que certo da fala autoritaria e decidida de sua irma mais velha. Era dificil imagina-la passando em revista a Guarda Irlandesa, como Lily sugerira, ou qualquer outro regimento.

Sempre que os quatro saiamos juntos, as duas mulheres atraiam invariavelmente intensos olhares de admiracao masculina, Eunice nao ficando atras da irma, embora esta fosse bem mais espetacular. Noutras circunstancias, eu me teria sem duvida sentido atraido pela moca, mas, confrontado com o voyeurismo semi-inocente de Fabian e perseguido pelo olhar frio e florentino de Lily, eu nao conseguia expressar qualquer proposta, ou sequer dar a entender que elas poderiam ter boa acolhida, se viessem da irma de Lily. Fora educado para acreditar que o sexo era uma aberracao privada, nao um empreendimento publico, e era demasiado tarde para mudar essa concepcao. Desde que ela chegara, tinha-me despedido de Eunice castamente, no elevador, sem ao menos lhe dar um beijo na face. Nossos quartos ficavam em andares diferentes.

Foi com alivio que ouvi as duas mulheres se queixarem da prolongada estada em Zurique. Ja tinham comprado tudo o que queriam, o clima as oprimia e nao sabiam o que fazer durante as longas horas que eu e Fabian passavamos em conferencias, em escritorios ou no hall do hotel, com os varios homens de negocios, banqueiros e corretores que Fabian arrebanhava no centro financeiro da cidade, todos eles falando, ou antes sussurrando, ingles com os mais diversos sotaques, nenhum dos quais eu entendia melhor do que Eunice ou Lily, se estivessem no meu lugar. Infelizmente, eu tinha de ficar, nao so a pedido de Fabian como por querer estar presente a todas as transacoes. Mas as duas irmas tinham partido de trem para Gstaad, onde o sol, segundo o servico de meteorologia, brilhava, a neve estava otima e a companhia era divertida. Nos dois iriamos mais tarde, prometera Fabian, tao logo concluissemos os negocios em Zurique, o que nao demoraria, apos o que seguiriamos para a Italia. Fabian deu-lhes o equivalente, em francos suicos, a dois mil dolares, sacados da nossa conta conjunta. Dinheirinho para pequenas despesas, segundo ele dizia, fazendo-me estremecer. Para quem levara uma existencia precaria durante quase toda a vida, ele sem duvida tinha habitos senhoriais.

Uma vez as duas irmas fora da circulacao, Fabian conseguiu arranjar tempo para algumas das outras atracoes da cidade. Passamos longas horas no museu de arte, dando especial atencao a um nu de Cranach que Fabian corria a admirar, segundo dizia, cada vez que passava por Zurique. Nunca procurava explicar-me os seus gostos, mas parecia satisfeito com que eu o acompanhasse nos seus tours pelas galerias de arte da cidade. Fomos a um concerto de musica de Brahms, mas tudo o que ele disse foi:

– Na Europa central, e preciso ouvir Brahms.

Levou-me ate o cemiterio onde James Joyce, que morreu em Zurique, estava enterrado, o tumulo marcado por uma estatua do escritor, e la ficou sabendo que eu nunca lera Ulisses. Quando voltamos a cidade, Fabian levou-me direto a uma livraria e comprou-me o livro. Pela primeira vez na minha vida, suspeitei que as prisoes deste mundo pudessem estar cheias de homens que tinham lido Platao e apreciavam musica, literatura, pintura moderna, bons vinhos e cavalos puros-sangues.

Passou-me pela cabeca que ele estaria tentando, por algum motivo particular, corromper-me. Mas, nesse caso, fazia-o de uma maneira toda especial. Desde que deixaramos Paris, ele me tratava de um jeito meio afetuoso, meio condescendente, como se fosse um tio sofisticado encarregado da educacao mundana de um sobrinho oriundo de algum lugar atrasado. As coisas tinham-se passado tao rapidamente e o futuro que ele pintava parecia tao brilhante, que eu nao tinha nem tempo nem vontade de me queixar. A verdade e que, naqueles primeiros dias, apesar dos momentos de panico, eu me sentia feliz por ter trocado de mala com ele. Esperava nao demorar muito a poder comportar-me como ele. Em outras epocas, celebravam-se nos herois virtudes tao comuns como a coragem, a generosidade, a astucia, a fidelidade e a fe. O autodominio, o aplomb [6], a confianca em si mesmo, quase nunca eram incluidos. Mas, nos nossos tempos, quando quase ninguem sabe onde poe os pes ou pode dizer com seguranca se esta caindo ou subindo, avancando ou recuando, se e amado ou odiado, desprezado ou adorado, o aplomb tem, pelo menos para gente como eu, uma importancia capital.

Miles Fabian podia ter falhas, mas tinha, e de sobra, aplomb.

– Surgiu algo – anunciou Fabian. – Em Lugano. – Estavamos no living da sua suite, como sempre cheia de jornais americanos, ingleses, franceses, alemaes e italianos, todos abertos nas paginas financeiras. Ele ainda estava de robe, tomando o seu cafe da manha. Eu ja tinha tomado o meu Alka-Seltzer da manha no meu quarto, situado no andar de baixo.

– Pensei que iamos para Gstaad – falei.

– Iremos depois. – Mexeu vigorosamente o cafe. Pela primeira vez, reparei que suas maos pareciam mais velhas do que sua cara. – Claro que, se voce quiser, pode ir a Gstaad sem mim.

– Voce vai a Lugano a negocios?

– De certa maneira – respondeu ele, displicentemente.

– Entao vou a Lugano com voce.

– Socio! – comentou, com um sorriso.

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