Uma hora mais tarde, estavamos no Jaguar azul recem-comprado, com Fabian ao volante, rumo ao colo de San Bernardino. Ele guiava velozmente, mesmo quando comecamos a subir os Alpes e passamos por pedacos de gelo e de neve. Quase nao disse palavra ate termos atravessado o enorme tunel e saido na vertente sul da cadeia de montanhas. Parecia absorto e eu ja o conhecia o suficiente para saber que estaria debatendo algo em sua cabeca, provavelmente o quanto lhe caberia do negocio atual.

O tempo estivera encoberto desde Zurique, mas quando saimos do tunel o sol brilhava, so de vez em quando obscurecido por altas e apressadas nuvens brancas. O sol parecia ter influido em Fabian, que agora assobiava baixinho enquanto guiava.

– Imagino – falou – que voce queira saber por que estamos indo a Lugano.

– Sou todo ouvidos – retruquei.

– Ha um senhor alemao, meu conhecido – comecou ele -, que esta morando la. Desde o 'milagre economico alemao', tem havido um grande afluxo de alemaes ricos a essa regiao. Parece que o clima do Ticino lhes agrada. E os bancos tambem. Voce ja ouviu falar no 'milagre economico alemao'…?

– Ja. E o que esse senhor alemao seu conhecido faz?

– E dificil explicar. – Fabian estava agora dissimulando e ambos sabiamos disso. – Faz um pouco de tudo. Negocia com quadros dos velhos mestres. Aumenta sua fortuna. Fizemos um ou dois pequenos negocios. Ontem a noite, ele me telefonou para Zurique e pediu que eu lhe fizesse um pequeno favor, em troca do qual ele me demonstraria sua gratidao. Mas nada esta ainda decidido. E tudo muito vago. Nao se preocupe… se resultar em algo, voce ficara a par de todos os detalhes.

Quando ele falava assim, nao adiantava fazer-lhe mais perguntas. Liguei o radio e descemos para o verde Ticino, acompanhados por um soprano que cantava uma aria da Aida.

Em Lugano, hospedamo-nos num hotel novo, situado a margem do lago. Por todo o lado havia flores. As frondes das palmeiras balancavam suavemente ao vento sul e, no terraco, ao ar livre, pessoas em roupa de verao tomavam cha. Era quase como se estivessemos no Mediterraneo e nao era dificil entender por que o clima do Ticino agradava a uma raca nordica e refrigerada. Na piscina envidracada, anexa ao terraco, uma robusta loura nadava metodicamente.

– Todos os hoteis tiveram que instalar piscinas – disse Fabian. – Nao se pode mais nadar no lago. Esta poluido.

O lago estendia-se azul e aparentemente limpido ao sol da tarde. Lembrei-me do velho no bar de Burlington queixando-se de que o lago Champlain dali a cinco anos estaria tao poluido quanto o lago Erie.

– Quando estive pela primeira vez na Suica, depois da guerra – disse Fabian -, podia-se nadar em todos os lagos, em todos os rios. – Suspirou. – O tempo nao melhora nada. Agora, se voce tiver a bondade de pedir ao garcom que traga uma garrafa de Dezaley, eu poderei telefonar para o meu amigo, a fim de combinar com ele. Nao demoro.

Mandei vir o vinho e fiquei ali, sentado ao sol do fim da tarde, apreciando a paisagem. As negociacoes que Fabian estava fazendo ao telefone deviam ser complicadas porque eu ja tinha bebido quase metade da garrafa de vinho quando ele voltou.

– Tudo em ordem – anunciou, sorridente, ao mesmo tempo em que se sentava e se servia de um copo de vinho. – Vamo-nos encontrar com ele as seis, na sua villa. O nome dele, por falar nisso, e Steubel. Nao lhe vou dizer mais nada sobre ele por ora…

– Ate agora, voce nao me disse nada – lembrei-lhe.

– Isso mesmo. Nao quero que voce tire conclusoes antecipadas. Espero que nao tenha preconceitos contra os alemaes…

– Que eu saiba, nao tenho.

– Otimo! – disse ele. – Muitos americanos ainda estao combatendo na Segunda Guerra Mundial. Oh, antes que me esqueca, a fim de explicar a sua presenca, disse ao Sr. Steubel que voce era o Professor Grimes, do departamento de arte da Universidade de Missouri.

– Meu Deus, Miles! – exclamei, quase espirrando o vinho. – Se ele entender alguma coisa de arte, em dez segundos percebera que eu sou um completo ignorante. – Agora eu sabia por que razao Fabian passara a primeira metade da viagem calado e pensativo. Estivera inventando uma falsa identidade para mim.

– Eu nao me preocuparia – disse Fabian. – E so voce parecer grave e consciencioso, examinar com atencao tudo o que ele nos mostrar. E, quando eu lhe pedir sua opiniao, hesite… voce sabe como hesitar, nao sabe?

– Continue – disse eu, sombrio. – Depois de hesitar, o que eu faco?

– Voce diz: 'A primeira vista, Sr. Fabian, parece autentico'. Mas entao voce acrescenta que gostaria de voltar amanha, a fim de examinar melhor a obra, a luz do dia.

– Qual a vantagem disso?

– Quero que ele passe a noite sem dormir – explicou calmamente Fabian. – Ficara mais generoso amanha. Lembre-se de nao mostrar um entusiasmo indevido.

– Essa vai ser a coisa mais facil que eu ja fiz, desde que nos conhecemos – retruquei, azedo.

– Sei que posso confiar em voce, Douglas.

– E quanto e que isto vai nos custar?

– Isso e o melhor de tudo – respondeu Fabian, alegremente. – Nada.

– Explique – exigi, cruzando os bracos.

– Preferiria nao explicar, por ora – disse Fabian, visivelmente irritado. – Seria muito melhor deixarmos as coisas correrem. Espero que entre nos haja uma certa confianca…

– Explique ou eu nao vou – ameacei.

Ele abanou a cabeca, irritado.

– Muito bem, ja que voce insiste… Por motivos la dele, o Sr. Steubel esta se desfazendo de uma colecao de familia. Acredita que, agindo dessa forma, podera evitar contestacoes legais por parte de parentes afastados. E, naturalmente, ele prefere nao pagar os impostos absurdos que os diversos governos cobram sobre esse tipo de transacoes. Para nao falar das dificuldades com a alfandega, quando se pretende despachar obras de arte de um pais para outro…

– Por acaso voce esta querendo me dizer que eu e voce vamos contrabandear obras de arte para fora da Suica?

– Devia me conhecer melhor, Douglas – disse ele, num tom de censura.

– Diga-me, entao – pedi. – O que vamos fazer: comprar ou vender?

– Nem uma coisa nem outra – respondeu Fabian. – Somos simplesmente agentes. Agentes honestos. Ha um ricaco sul-americano, que por acaso e meu conhecido…

– Mais um conhecido.

– Exatamente – disse Fabian. – Sei que ele e louco por pintura do Renascimento e esta disposto a pagar regiamente por telas autenticas. Os paises sul-americanos sao famosos por sua discricao na importacao de obras de arte. Deve haver milhares de grandes quadros europeus que atravessaram silenciosamente o oceano e agora enfeitam paredes sul-americanas, sem que ninguem saiba disso aqui na Europa.

– Voce me disse que nao iamos contrabandear nada da Suica – falei. – A ultima vez que olhei no mapa, a Suica nao ficava na America do Sul.

– Nao me venha com ironias, Douglas – pediu Fabian. – Nao combinam com voce. O sul-americano de que estou falando esta atualmente em St.Moritz. E muito amigo do embaixador do seu pais e a mala diplomatica esta sempre aberta para ele. Deu a entender que esta disposto a pagar um maximo de cem mil dolares e acredito que o Sr. Steubel podera ser convencido a nos pagar uma boa comissao sobre esse preco.

– O que e que voce chama de uma boa comissao? – perguntei.

– Vinte e cinco por cento – disse, imediatamente, Fabian. – Vinte e cinco mil dolares apenas por atravessar de carro, uma das regioes mais pitorescas da bela Suica… e tudo dentro da mais completa legalidade. Agora voce entende por que em Zurique eu lhe disse que so depois iriamos a Gstaad?

– Entendo – disse eu.

– Por que esse tom de voz tao sombrio? – censurou Fabian. – Oh, incidentalmente, o quadro que vamos ver e um Tintoretto. Como professor de arte, voce devera saber reconhece-lo. Nao vai esquecer-se do nome, vai?

– Tintoretto – repeti.

– Excelente! – disse ele, sorrindo para mim. – Este vinho e uma delicia! – E encheu de novo ambos os copos.

Ja estava escuro quando chegamos a villa do Sr. Steubel. Era uma casa quadrada, de dois andares, feita de pedra e pendurada no alto de uma estrada estreita e nao iluminada, sobre o lago. Nao se via nenhuma luz por entre as venezianas de madeira das janelas.

– Tem certeza de que e aqui? – perguntei a Fabian. Nao parecia a mansao de um homem que se estava desfazendo de uma colecao de velhos mestres que herdara da familia.

– Certeza absoluta – respondeu Fabian, desligando o motor do carro. – Ele me deu indicacoes explicitas.

Saimos do carro e atravessamos um jardinzinho malcuidado. Fabian tocou a campainha, mas nao ouvi nada la dentro. Tive a sensacao de que estavamos sendo observados. Fabian tocou novamente a campainha e a porta finalmente se abriu. Uma velhinha de touca e avental de renda disse:

– Buona sera.

– Buona sera, signora – redarguiu Fabian, entrando. A velha mostrou-nos o caminho, coxeando pelo hall mal iluminado. Nao havia nenhum quadro nas paredes.

Ela abriu uma pesada porta de carvalho e entramos numa sala de jantar iluminada por um lustre de cristal por cima da mesa. Um homem enorme e careca, com uma grande panca e uma barba de capitao de baleeiro, estava de pe a nossa espera, metido num terno de veludo cotele amassado que incluia um par de calcoes curtos sob os quais se viam os seus macicos tornozelos, envoltos em meias de la vermelhas. Atras dele, sem moldura, iluminada pelo lustre, pendia uma tela escura, presa por tachas a parede amarelada. A tela representava uma madona e o menino, e devia ter uns setenta e cinco centimetros de largura por quase um metro de altura.

O homem saudou-nos em alemao, com uma pequena curvatura, e a velha saiu, fechando a porta atras dela.

– Infelizmente, Sr. Steubel – disse Fabian -, o Professor Grimes nao entende alemao.

– Nesse caso, vamos falar ingles – disse o Sr. Steubel. Seu ingles tinha apenas um leve sotaque alemao. – Ainda bem que o senhor pode vir. Posso lhes oferecer algo de beber?

– Muito obrigado, Sr. Steubel – replicou Fabian. – Mas acho que nao temos tempo. O Professor Grimes precisa telefonar as sete horas para a Italia. E, depois, para a America.

O Sr. Steubel pestanejou e esfregou as maos, como se elas estivessem suadas.

– Espero que o professor consiga logo a ligacao para a Italia – disse ele. – O sistema telefonico daquele pais… – Nao terminou a frase, mas eu tive a impressao de que ele nao queria que ninguem telefonasse para lugar algum.

– Com licenca – disse eu, dando um passo na direcao da tela.

– Por favor. – O Sr. Steubel saiu do caminho.

– Naturalmente, o senhor tem os documentos? – perguntei.

Ele voltou a esfregar as maos, so que agora com mais forca.

– Claro que tenho. Mas nao aqui comigo. Estao na… na minha casa, em… em Florenca.

– Entendo – disse eu, friamente.

– Seriam precisos alguns dias – disse Steubel. – E o Sr. Fabian diz que tem pressa… – Voltou-se para Fabian. – O senhor nao me disse que o cavalheiro em questao vai embora no fim da semana?

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