– E estamos – disse ele. – Mas ha ferias de todo tipo, nao ha? Nao se preocupe, voce vai poder esquiar a vontade.

Quando terminamos de jantar, ja tinhamos resolvido ficar em Gstaad pelo menos mais uma semana. Eu disse que estava querendo respirar um pouco e perguntei a Eunice se gostaria de dar uma volta a pe comigo, achando que, se ficassemos a sos, talvez pudessemos falar abertamente, mas ela abriu a boca e disse que o exercicio e o ar frio a tinham deixado exausta e que so queria mesmo era jogar-se na cama. Acompanhei-a ate o elevador, beijei-a no rosto e desejei-lhe uma boa noite. Nao voltei para o salao de jantar; peguei o meu sobretudo e fui dar uma volta a pe, sozinho, a neve rodopiando em torno de mim em meio a noite escura.

O recepcionista se enganara. No dia seguinte, a manha estava azul, fria e transparente. Aluguei botas e esquis e desci a montanha com Lily e Eunice, cuja maneira de esquiar, britanicamente imprudente, ainda acabaria por joga-las numa cama de hospital. Fabian nao veio conosco. Disse que precisava dar uns telefonemas. Nao me disse para quem ou sobre que assunto, mas eu sabia que mais cedo ou mais tarde acabaria descobrindo e procurei nao pensar em quanto da nossa fortuna conjunta estaria sendo arriscado em perigosos empreendimentos, antes de nos reunirmos para o almoco. Ele nos dissera que se encontraria conosco por volta de uma e meia no Eagle Club, numa montanha chamada Wassengrat, para podermos almocar juntos. Tratava-se de um clube fechado, mas Fabian naturalmente conseguira que todos nos pudessemos frequenta-lo durante nossa estada em Gstaad.

Estava uma manha maravilhosa: o ar brilhante, a neve perfeita, as mocas belas e felizes ao sol, a velocidade inebriante. So isso, pensei, fazia com que tudo o que me acontecera desde aquela noite no Hotel St. Augustine quase valesse a pena. Havia apenas uma coisa chata. Um jovem americano, cheio de maquinas fotograficas, nao parava de tirar fotos de nos, subindo nos telefericos, ajustando os esquis, rindo, comecando a descer montanha abaixo.

– Voces conhecem aquele sujeito? – perguntei as mocas. Nao me parecia ser um dos rapazes que vira com elas no bar, na noite anterior.

– Nunca o vi mais gordo – disse Lily.

– Ele esta tirando fotos num tributo a nossa beleza – declarou Eunice. – A beleza de nos tres.

– Nao preciso de tributos a minha beleza – retruquei. A certa altura, quando Eunice caira e eu estava voltando para ajuda-la a colocar de novo os esquis, o homem apareceu e comecou a bater fotos de todos os angulos. O mais gentilmente possivel, perguntei:

– Ei, amigo, voce nao acha que ja tirou fotos demais?

– Nao, nunca sao demais – disse o homem. Era um rapaz magro e falador, metido em roupas velhas, e continuou a bater fotos e mais fotos. – La no jornal gostam de poder escolher.

– Jornal? – retruquei. – Que jornal?

– O Women's Wear Daily. Estou fazendo uma reportagem sobre Gstaad. Voces sao justamente o que preciso. Chiques e fotogenicos. Gente feliz, bem na moda e sem preocupacoes.

– Isso e o que voce pensa – respondi, sombrio. – Ha muitas outras pessoas aqui igualmente chiques e fotogenicas. Por que voce nao as fotografa? – Nao me agradava a ideia de ter a minha foto num jornal de Nova York com uma circulacao aproximada de cem mil exemplares. Quem podia saber o que os dois homens que tinham visitado Drusack liam todas as manhas?

– Se as senhoras objetarem – disse o homem, educadamente -, naturalmente a gente nao tira mais fotos.

– Nao objetamos – respondeu Lily – desde que nos mandem provas. Adoro fotos de mim mesma… desde que me facam justica, e claro!

– Como nao haviam de fazer justica? – retrucou o rapaz galantemente. Devia ja ter tirado mais de mil fotos de mulheres bonitas em toda a sua carreira, e aposto como a timidez nao o atrapalhara. Senti inveja dele.

Mas ele saiu esquiando despreocupadamente e nao voltamos a ve-lo senao quando estavamos no terraco do clube, tomando um bloody-mary e esperando por Fabian.

A essa altura, outra complicacao surgira. Ao meio-dia, reparei num pequeno vulto que nos seguia a distancia. Tratava-se de Didi Wales. Nunca se aproximava muito, mas, para onde quer que fossemos, la ia ela esquiando atras de nos, parando quando paravamos, avancando quando avancavamos. Esquiava bem, com leveza e seguranca, e, mesmo quando eu aumentava a velocidade, o que fazia com que Lily e Eunice voassem montanha abaixo completamente sem controle, o vultozinho continuava acompanhando-nos, como se estivesse ligado a nos por um cordao comprido e invisivel.

Na ultima descida, pouco antes do almoco, esperei propositalmente na estacao do teleferico, deixando que Lily e Eunice subissem juntas numa das cadeiras duplas. Didi entrou no edificio da estacao, seus longos cabelos louros agora presos com um laco na nuca e caindo-lhe pelas costas abaixo. Usava os mesmos blue jeans bordados e um anoraque cor de laranja.

– Vamos subir juntos, Didi – disse eu, quando a cadeira chegou e ela subiu com as suas pesadas botas.

– Como quiser – respondeu ela. Sentou-se sem falar e a cadeira saiu para a luz do sol e comecou a subir silenciosamente, deixando-nos ver toda a cidade, espalhada embaixo. Os alvos picos das montanhas em volta pareciam catedrais brancas.

– Importa-se se eu fumar? – perguntou ela, tirando do bolso um maco de cigarros.

– Importo-me.

– Ok, papai! – disse ela, e depois riu. – Que tal o dia? Esta se divertindo?

– Muito.

– O senhor nao esta esquiando tao bem como esquiava – disse ela. – Parece estar fazendo um esforco maior.

Eu sabia que isso era verdade, mas nao gostei de ouvi-la dizer aquilo.

– Estou um pouco enferrujado – repliquei, com dignidade. – Tenho andado ocupado.

– Esta se vendo – disse ela, aparentando desinteresse. – E essas mocas que o acompanham – acrescentou, com um muxoxo – ainda vao acabar se matando.

– Ja as avisei.

– Aposto que quando nao ha nenhum homem com elas, se e que vao a algum lugar sem um homem, engatinham montanha abaixo. Mas tem roupas chiques mesmo. Vi as duas nas lojas, no dia em que chegaram, comprando tudo o que havia.

– Sao mocas bonitas – defendi-as -, e gostam de andar elegantes.

– Se as calcas delas fossem um centimetro mais justas – afirmou Didi -, elas nao poderiam respirar.

– Suas calcas tambem nao sao tao largas assim.

– Mas eu sou jovem – retrucou ela. – E diferente.

– Pensei que voce tinha dito que ia me guiar, aqui em Gstaad.

– Se o senhor nao estivesse ocupado – disse ela. – E o senhor me parece muito ocupado.

– Mas voce podia ter vindo conosco – retruquei. – As senhoras teriam gostado.

– Pode ser, mas eu nao teria – declarou ela. – Aposto como voces vao todos almocar no Eagle Club.

– Como e que voce sabe?

– Vao, nao vao?

– Sim, por acaso vamos.

– Eu sabia! – disse ela, com uma nota de triunfo e desprezo na voz. – Mulheres que se vestem como elas sempre almocam la.

– Voce nem sequer as conhece.

– Este e o meu segundo inverno em Gstaad. Aprendi a distinguir os tipos de pessoas.

– Por que voce nao almoca conosco?

– Obrigada, mas nao vou aceitar. Nao gosto do tipo de conversa. Principalmente da parte das mulheres. Sempre falando mal umas das outras, roubando os maridos umas das outras. Confesso que me decepcionou um pouco, Sr. Grimes.

– Eu? Por que?

– Pelo fato de estar num lugar destes. Com mulheres dessas.

– Sao umas perfeitas senhoras – falei. – Nao se meta a censurar todo mundo. Elas nao falam mal de ninguem.

– Eu sou obrigada a estar aqui – continuou ela, teimosamente. – Minha mae acha que uma moca, para ser bem educada, precisa estudar na Suica. Ah! Ela acha que estou estudando muito! Estou e aprendendo a ser inutil em tres linguas. E cara.

A amargura em sua voz era perturbadoramente adulta. Nao era o tipo de conversa que se esperava ter com uma bonita jovem americana de dezesseis anos, enquanto se subia lentamente ao sol, tendo aos pes a paisagem de conto de fadas dos Alpes.

– Bem – falei, sabendo que ia soar falso -, tenho certeza de que voce nao vai ser inutil, mesmo que em varias linguas.

– Farei tudo para nao ser – disse ela.

– Quais sao seus planos?

– Pretendo ser arqueologa. Escavar as ruinas de antigas civilizacoes. Quanto mais antigas, melhor. Quero afastar-me o mais possivel da civilizacao do nosso seculo. Pelo menos, da versao dos meus pais.

– Acho que voce esta sendo muito severa com eles – disse eu, defendendo nao so os pais dela, como tambem a mim proprio. Afinal de contas, os dois eram quase da mesma geracao que a minha.

– Se o senhor nao se importa, prefiro nao falar em meus pais – disse ela. – Prefiro falar no senhor. Ja se casou?

– Nao.

– Tambem nao pretendo casar-me. – Olhou para mim desafiadoramente, como se esperasse que eu fizesse algum comentario.

– Parece que esta saindo de moda – falei.

– E com boas razoes – retrucou ela. Estavamos chegando ao alto da montanha e preparamo-nos para desembarcar. – Se alguma vez quiser esquiar comigo, a sos… – sublinhou – deixe um recado para mim no hotel. – Pulamos da cadeira e pegamos os nossos esquis. – Mas, se eu fosse o senhor – acrescentou ela, ao sairmos da estacao para o sol -, nao ficaria aqui muito tempo. Nao e o seu habitat natural.

– Em sua opiniao, qual e o meu habitat natural?

– Acho que Vermont. – Inclinou-se e pos-se a colocar os esquis, agil e competente. – Uma cidadezinha de Vermont, onde as pessoas trabalhem para viver.

Pus meus esquis ao ombro. O clube ficava a uns cinquenta metros dali, ao nivel do teleferico, e um caminho aberto na neve levava ate a entrada.

– Por favor, nao se zangue comigo – disse ela, endireitando-se. – Ha pouco tempo, tomei a decisao de falar sempre o que penso.

Levado por um impulso que nao tentei analisar, inclinei-me e beijei-lhe a face fria e rosada.

– Oh, muito obrigada – disse ela. – Um esplendido almoco! – Era evidente que tinha ouvido Eunice e Lily falarem. E partiu, esquiando competentemente. Fiquei observando seu vulto brilhantemente colorido afastar-se veloz, e sacudi a cabeca. Depois, carregando os esquis, encaminhei-me para o macico edificio de pedra que servia de sede ao clube.

Fabian apareceu quando eu, Lily e Eunice estavamos tomando o nosso segundo bloody-mary no terraco do clube. Nao vinha vestido para esquiar, mas estava muito elegante, num sueter de gola roulee, casaco tiroles de la azul, calcas de veludo cotele cor de caramelo e botas de camurca 'pos-esqui'. Eu estava usando a roupa de esquiar que comprara em St.Moritz por ser a coisa mais barata que havia na loja, e me sentia completamente deselegante ao lado dele. Minhas calcas ja estavam formando bolsas no assento e nos joelhos. Tinha certeza de que todo mundo no terraco estava

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