dissera-lhe que teria de guiar ate Paris e perguntara-lhe se ela queria vir comigo.

– Voce quer que eu va? – replicou ela.

– Quero.

– Entao, eu vou – respondera ela, secamente. Quadrocelli viu-nos tao logo chegamos a doca e pulou agilmente do barco para vir ao nosso encontro, robusto e nautico na sua velha calca de veludo e em seu sueter de marujo.

– Subam, subam – disse ele, inclinando-se para beijar a mao de Evelyn e apertando cordialmente a minha. – Esta tudo pronto. Ja preparei tudo. O mar, como podem ver, esta calmo como um lago e azul como nos calendarios. A cesta com o lanche esta pronta. Frango, ovos cozidos, queijo, frutas, vinho. Comida adequada a quem vai navegar…

Estavamos a uns vinte metros do barco, quando ele explodiu. Pedacos de madeira, de vidro e de arame voaram a nossa volta, forcando-nos a nos estendermos ao comprido no chao. Depois, tudo ficou num silencio de morte. Quadrocelli levantou-se lentamente e olhou para seu iate. A popa fora arrancada e flutuava no mar, formando um estranho angulo com a doca, como se o barco tivesse sido partido ao meio.

– Voce esta bem? – perguntei a Evelyn.

– Acho que sim – respondeu ela, num fio de voz. – E voce?

– Ok – respondi.

Levantei-me e passei o braco pelos ombros dela. – Giuliano… – comecei a falar.

Mas ele nao olhou para mim. Nao tirava os olhos do barco.

– Fascisti – murmurou. – Fascisti! Miseraveis! – Comecou a sair gente dos predios em frente ao cais e logo nos vimos cercados por uma multidao, todo mundo falando ao mesmo tempo, fazendo perguntas. Quadrocelli parecia nao ver ninguem. – Leve-me para casa, por favor – disse-me ele. – Acho que nao vou conseguir guiar. Quero ir para casa.

Abrimos caminho por entre a multidao ate o nosso carro. Quadrocelli nao voltou a olhar para o seu barquinho, que afundava lentamente nas aguas cheias de oleo do cais.

Ja no carro, comecou a tremer. Violentamente, incontrolavelmente. Sob o bronzeado, seu rosto estava mortalmente palido.

– Eles podiam ter matado voces, tambem – disse, batendo os dentes. – Se tivessem chegado dois minutos mais cedo… Perdoem-me. Perdoem-nos a todos. Dolce Italia. Paraiso dos turistas. – Ria como se estivesse louco.

Quando chegamos a casa dele, nao quis que entrassemos, nem mesmo que saissemos do carro.

– Por favor – disse ele -, preciso falar com minha mulher. Nao quero parecer mal-educado, mas precisamos ficar a sos.

Vimo-lo caminhar, lentamente, parecendo um velho, ate a porta da casa.

– Pobre homem! – foi tudo quanto Evelyn pode dizer.

Voltamos para o hotel. Nao dissemos nada do que acontecera a ninguem. Logo ficariam sabendo. Tomamos cada um uma dose de conhaque, no bar. Dois mortos, pensei, um em Nova York, outro na Suica, e por um triz que nao morreu mais ninguem na Italia. Evelyn pegou o seu copo com mao firme. A minha nao estava.

– A bela Italia – brindou ela. – O sole mio. Acho que esta na hora de ir embora, voce nao acha?

– Acho – respondi.

Subimos, fizemos as malas, pagamos e saimos do hotel, rumo ao norte, tudo em vinte minutos. Nao paramos, exceto para por gasolina, ate depois da meia-noite, quando ja tinhamos passado a fronteira e estavamos em Monte Cario. Evelyn insistiu em ver o cassino e tentar a sorte na roleta. Eu nao tinha vontade de jogar, nem mesmo de apreciar, de modo que fiquei a espera no bar. Dali a pouco, ela voltou, sorridente. Tinha ganho quinhentos francos e pagou a minha conta para festejar. Quem acabasse casando com ela teria uma mulher de nervos de aco.

Evelyn acompanhou-me a Orly no carro alugado, com chofer. O Jaguar ficara na garagem, a espera de Fabian. Evelyn ia ficar mais uns dias em Paris. Havia anos que nao ia a Paris e achava uma pena nao aproveitar. De qualquer maneira, eu ia para Boston e ela viajaria direto para Nova York. Durante a viagem atraves da Franca, ela se mostrara carinhosa e despreocupada. Tinhamos viajado sem pressa, parando para visitar lugares e fazer refeicoes nos arredores de Lyon e Avallon. Ela tirara fotos minhas diante do Hospice de Beaune, onde visitamos as adegas, e no patio de Fontainebleau. Passaramos a ultima noite perto de Paris, em Barbizon, numa velha e encantadora estalagem. Tinhamos jantado maravilhosamente bem. Durante o jantar, eu lhe contara tudo. De onde provinha meu dinheiro, como conhecera Fabian, qual o nosso trato. Tudo. Ela escutara sem dizer nada. Quando, por fim, terminei, ela riu.

– Bem – falou -, agora ja sei por que voce quer se casar com uma advogada. – E, inclinando-se sobre a mesa, beijou-me. – Conhece aquele ditado que diz: 'Ladrao que rouba ladrao…'? – disse ela, sem parar de rir. – Nao se preocupe, querido. Nao sou contra certos tipos de roubo.

Dormimos a noite toda nos bracos um do outro. Sem o dizermos, sabiamos que um capitulo das nossas vidas estava terminando e tacitamente adiavamos o fim. Ela nao fez mais perguntas sobre Pat.

Quando chegamos a Orly, Evelyn nao saiu do carro.

– Detesto aeroportos – explicou – e estacoes. Quando nao sou eu que estou partindo.

Beijei-a e ela bateu-me no rosto maternalmente.

– Tome cuidado, em Vermont – falou. – E cuidado tambem com as mudancas de temperatura.

– Considerando tudo, foram umas boas ferias, nao foram? – perguntei.

– Considerando tudo, foram umas ferias otimas. Estivemos em lugares lindos.

Eu tinha os olhos marejados de lagrimas. Os dela estavam mais brilhantes do que de habito, mas secos. Toda ela estava linda, bronzeada e descansada. Tinha o mesmo vestido que usara ao chegar a Porto Ercole.

– Telefono para voce – falei, ao sair do carro.

– Telefone! – disse ela. – Voce tem o meu numero em Sag Harbor.

Enfiei a cabeca no carro e beijei-a de novo.

– Bem, esta na hora – falou ela, meigamente.

Segui o carregador que levava minha bagagem e, ao chegar ao balcao, certifiquei-me de que tinha todos os comprovantes de minhas malas.

Peguei um resfriado no aviao e estava fungando e com febre quando aterrissamos em Logan. O funcionario da alfandega deve ter ficado com pena de mim, porque nao abriu nenhuma mala, de modo que nao tive que pagar direitos sobre os cinco ternos feitos em Roma. Achei que era um bom agouro, para contrabalancar o resfriado. Disse ao chofer de taxi para me levar ao Ritz-Carlton, onde pedi um quarto com sol. Aprendera com Fabian a licao do melhor hotel da cidade. Mandei vir uma Biblia e passei os tres dias seguintes metido no quarto, bebendo cha com rum e aspirina, sentindo arrepios, lendo trechos do Livro de Jo e vendo televisao. Nada do que vi na televisao me fazia feliz por ter voltado a America.

No quarto dia, o resfriado se fora. Sai do hotel, pagando com dinheiro, e aluguei um carro. O tempo estava umido e ventoso, com enormes nuvens negras correndo pelo ceu. Nao estava um bom dia para guiar, mas eu estava com pressa. Fosse o que fosse que tinha que acontecer, eu queria que acontecesse logo.

Eu ia a toda. A paisagem, entre uma estacao e outra, estava como que morta, desolada, as arvores nuas, os campos lamacentos, sem a graca da neve, as casas fechadas. Quando parei para por gasolina, um aviao voava, baixo mas invisivel, entre as nuvens espessas. Parecia preparar-se para jogar bombas. Centenas de vezes eu tinha atravessado aquela regiao aos controles de um aviao. Apalpei o dolar de prata em meu bolso.

Cheguei a Burlington pouco antes das tres da tarde e fui direto para o ginasio. Estacionei o carro em frente da escola, desliguei o motor e fiquei a espera, as janelas todas fechadas por causa do frio. Ouvi a sineta das tres e vi o mar de jovens sair pelos portoes. Finalmente, Pat saiu tambem. Usava um casacao e uma echarpe na cabeca. Miope como ela era, eu sabia que nao distinguiria meu carro a distancia, nem poderia saber se havia gente ou nao dentro dele. Ia abrir a porta do carro para sair e me dirigir a ela, quando um dos alunos a deteve, um garoto gordo e alto. Ficaram de pe, a luz cinzenta da tarde, falando, o vento acoitando-lhe o casaco e as pontas da echarpe. O vidro do meu lado estava comecando a ficar embacado com minha respiracao e entao desci-o para ve-la melhor.

Pat e o garoto pareciam nao ter pressa e eu fiquei ali, olhando para ela, durante o que me pareceu muito, muito tempo. Conscienciosamente, nesse momento procurei analisar o que sentia ao ve-la. Vi uma moca simpatica, bonitinha, que dentro de alguns anos teria uma aparencia austera, que nao tinha nada a ver comigo, que nao me podia dar nem alegria nem pena. Havia uma lembranca desbotada, quase obliterada de prazer e arrependimento.

Liguei o motor e passei lentamente por ela e pelo garoto, ainda conversando. Pat nao olhou para o carro. Ainda estavam no mesmo lugar da rua ventosa quando olhei pela ultima vez, atraves do retrovisor.

Do hotel, pedi uma ligacao para Sag Harbor.

– Amor, amor! – repetia Fabian, irritado. Estavamos no living da sua suite no St. Regis. Como de costume, mesmo que ele estivesse so um dia em cada hotel, havia varios jornais em diversas linguas espalhados pelo ambiente. Estavamos sozinhos. Lily tivera de voltar a Inglaterra. Eu fora direto para Nova York. Dissera a Evelyn, por telefone, que chegaria a Sag Harbor no dia seguinte.

– Pensei que voce tinha, pelo menos, vencido isso – dizia Fabian. – Parece um garoto de ginasio. Quando tudo ia tao bem, voce faz tudo ir pelos ares…

Recordando a manha no cais de Porto Ercole, nao gostei daquela expressao. Mas nao disse nada. Ia deixa-lo acabar de falar.

– Sag Harbor, pelo amor de Deus! – disse ele, andando de um lado para outro da grande sala. La fora, o ruido do transito na Fifth Avenue chegava ate nos, coado pelas grossas paredes e pelos pesados cortinados. – Fica a duas horas de Nova York. Voce ainda vai acabar com uma bala na cabeca. Ja esteve em Sag Harbor no inverno, por acaso? Quando a paixao esmorecer, o que voce espera fazer la?

– Encontrarei algo para fazer – repliquei. – Talvez fique lendo. E deixando voce trabalhar para mim.

Ele grunhiu e eu sorri.

– De qualquer maneira – falei -, talvez esteja mais seguro nos Estados Unidos, rodeado por milhoes de outros americanos, do que na Europa. Voce viu como eu me distingo dos europeus.

– Eu esperava ensina-lo a integrar-se no cenario.

– Nem em cem anos, Miles – disse eu. – E voce sabe disso.

– Nao acho que fosse assim tao impossivel – retrucou ele. – Observei alguns sinais de progresso no pouco tempo em que estivemos juntos. Por falar nisso, vejo que voce foi ao meu alfaiate.

Eu estava usando um dos ternos feitos em Roma.

– E – confirmei. – Que tal? Voce gosta?

– Melhorou muito – disse ele. – E tambem estou vendo que cortou o cabelo em Roma.

– Nada lhe escapa, hem? – falei.

– Nao quero nem pensar em como voce vai ficar, depois de um corte de cabelo no barbeiro de Sag Harbor.

– Do jeito que voce fala, ate parece que eu vou para o meio do mato. Essa parte de Long Island e uma das mais chiques dos Estados Unidos.

– Na minha opiniao – disse ele, continuando a andar de um lado para outro -, nao ha lugares chiques, como voce diz, nos Estados Unidos.

– Ora, vamos – retruquei. – Se nao me falha a memoria, voce veio de Lowell, Massachusetts.

– E voce veio de Scranton, Pennsylvania – rematou ele. – Ambos deviamos fazer o impossivel para esquecer essa desgraca. Entendo que voce queira casar-se, que vibre com a ideia de ter um

Вы читаете Plantao Da Noite
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату
×