O tema da politica veio a tona com a sobremesa, um sorvete de limao flutuando em champanha. (Num calculo por alto, estimei que a festa deveria ter custado pelo menos dois mil dolares, embora me envergonhasse de pensar em tais termos.) Entre os homens a mesa havia um americano gorducho, dos seus cinquenta anos, presidente de uma companhia de seguros, um critico de arte frances com uma barbicha preta e um volumoso banqueiro ingles. Os governos das tres nacoes foram educadamente deplorados pelos tres cavalheiros. O chauvinismo brilhava pela ausencia. Se, como dizem, o patriotismo e o ultimo refugio dos patifes, nao havia um unico patife a mesa. O frances queixava-se, num ingles quase perfeito, da Franca: 'A politica externa da Franca combina os piores elementos do gaullismo: egocentrismo, escapismo e ilusao'; o banqueiro ingles nao ficava atras: 'O trabalhador ingles perdeu toda a vontade de trabalhar. E eu nao o censuro'; o segurador americano afirmava: 'O destino do sistema capitalista foi selado no dia em que os Estados Unidos venderam dois milhoes de toneladas de trigo a Uniao Sovietica'.

Todos comeram suas lagostas com deleite, mantendo o garcom ocupado a encher ininterruptamente os copos com um delicioso vinho branco. Deitei uma olhadela para o rotulo de uma das garrafas – Corton-Charlemagne – e guardei o nome para futuras ocasioes de gala.

Mantinha-me calado, embora de vez em quando assentisse gravemente, para mostrar que tambem estava na festa. Hesitava em falar, temendo de algum modo mostrar que estava por fora, que uma unica opiniao deslocada me pudesse desmascarar como um intrometido, um homem das classes inferiores, pensando talvez em revolucao, tornando detectavel a perigosa mancha do Hotel St. Augustine, que ate ali eu conseguira esconder.

Depois do jantar, dancou-se numa enorme boate instalada no andar terreo. Eunice, que gostava de dancar, nao parou, enquanto eu nao sai do bar, bebendo, olhando para o relogio, sentindo-me deprimido. Sempre fora um pessimo dancarino, nunca gostara de dancar e nao ia dar um vexame entre todos aqueles dancarinos, aparentemente treinados nos passos da moda. Estava mesmo procurando sair sem dar na vista, quando Eunice se afastou do seu par e se aproximou de mim.

– Alma Gentil! – disse ela. – Voce nao esta se divertindo!

– E, nao estou.

– Sinto muito. Quer voltar para o hotel?

– Estava pensando nisso. Mas voce nao tem que ir.

– Nao se faca de martir, Alma Gentil. Detesto martires. Ja me cansei de dancar. – Tomou-me a mao. – Vamos. – Guiou-me pela beira da pista, evitando Lily. Uma vez em cima, pegamos os nossos casacos e saimos sem dizer adeus a ninguem.

Caminhamos pelo atalho cheio de neve, envoltos no frio da noite e no ar cheirando a pinheiros, num belo contraste com o calor e o barulho da festa. Quando ja tinhamos andado uns duzentos metros e o chale era apenas um pequeno foco de luz atras de nos, estacamos, como se obedecendo a um sinal, e nos beijamos. Uma vez. A seguir, caminhando sem pressa, rumamos para o hotel.

Pegamos nas nossas chaves e entramos no elevador. Sem dizer palavra, Eunice desceu no meu andar. Encaminhamo-nos lentamente pelo corredor atapetado. Era como se ela tambem quisesse saborear todos os momentos da noite.

Abri a porta do meu quarto e segurei-a para que Eunice pudesse entrar. Ela rocou em mim, a pele gelada e eletrica do seu casaco contra a minha manga. Entrei depois dela e acendi a luz do pequeno hall.

– Oh, meu Deus! – exclamou ela.

Deitada na cama, iluminada pela luz que vinha do hall, estava Didi Wales. Dormindo. E nua. Suas roupas estavam muito bem dobradas numa cadeira, as botas de neve uma ao lado da outra. Sua mae podia ter falhado em muita coisa, mas via-se que ensinara a filha a ser arrumada.

– Deixe-me sair daqui – disse Eunice num murmurio, como se temesse o que aconteceria se acordasse a moca adormecida. – A moca e sua.

– Eunice… – disse eu, desolado.

– Boa noite – replicou ela. – Divirta-se. – Passou por mim e saiu porta afora.

Olhei para Didi. Sua longa cabeleira loura quase lhe cobria o rosto, e sua respiracao compassada levantava-lhe e abaixava-lhe as pontas dos cabelos. A luz eletrica, sua pele era infantilmente rosada, exceto na garganta e no rosto, escurecidos pelo sol. Seus seios eram pequenos e cheios, suas pernas fortes, atleticas, pernas de colegial. As unhas dos pes estavam pintadas de vermelho. Podia ter posado para um anuncio de alimentos infantis, se tivesse mais roupas e as unhas sem pintar. Seu ventre era um pequeno monte macio, e o cabelo abaixo dele, uma sombra encaracolada. Tinha os bracos estendidos ao longo dos flancos, o que lhe dava um estranho ar de estar em guarda. Se fosse um quadro, em vez de uma jovem de carne e osso, poderia ter representado perfeitamente a inocencia.

Mas nao era um quadro e sim uma jovem de dezesseis anos cujos pais, pelo menos em teoria, eram meus amigos, e nao havia possibilidade de que as suas intencoes, entrando no meu quarto e deitando-se na minha cama, fossem inocentes. Tive o impulso covarde de esgueirar-me para fora do quarto e deixa-la passar ali a noite. Em vez disso, tirei o casaco e cobria-a com ele.

Ao fazer isso, acordei-a. Ela abriu os olhos lentamente e olhou para mim, afastando o cabelo do rosto. Depois, sorriu, um sorriso que a fez parecer ter apenas dez anos.

– Diabos, Didi – disse eu. – Em que tipo de colegio voce estuda?

– Um tipo de colegio onde as mocas pulam pelas janelas a noite – respondeu ela. – Achei que seria agradavel surpreende-lo. – Sua voz estava muito mais controlada do que a minha.

– Muito bem, voce me surpreendeu.

– E voce nao gostou?

– Nao – respondi. – Nao gostei nada.

– Quando voce se acostumar com a ideia – disse ela -, talvez mude de opiniao.

– Por favor, Didi…

– Se esta com medo de que eu seja virgem – declarou, muito seria -, pode ficar sossegado. Ja tive um caso com um homem bem mais velho do que voce. Um velho grego.

– Nao quero conversa – disse eu. – Quero e que voce saia dessa cama, vista-se, de o fora daqui e volte a pular a tal janela.

– Sei que nao e isso o que voce quer – disse ela, calmamente. – Esta falando tudo isso porque me conheceu quando eu tinha treze anos. Acontece que eu nao tenho mais treze anos.

– Sei quantos anos voce tem – retruquei -, e nao sao bastantes.

– Nada me chateia mais do que as pessoas fingirem que sou uma crianca. – A nao ser pelo afastar dos cabelos, ainda nao se arredara da cama. – Qual e a idade magica para voce? Vinte anos, dezoito?

– Nao tenho idade magica, como voce lhe chama. – Minha voz foi crescendo de exasperacao e sentei-me em frente dela para manter a dignidade e mostrar que estava pronto a ser razoavel. – Nao tenho por habito ir para a cama com mocas de qualquer idade, depois de ter falado com elas dez minutos.

– E eu, que pensei que voce era sofisticado! – exclamou ela, pondo nessa palavra todo o desprezo possivel. – Com aquelas damas elegantes e aquele Jaguar!

– Ok – disse eu. – Nao sou sofisticado. Agora, quer se levantar e se vestir?

– Nao acha que sou bonita? Muita gente me disse que meu corpo e lindo. Conhecedores.

– Acho que voce e muito bonita. Linda. Mas isso nada tem a ver com o caso.

– Metade dos rapazes desta cidade estao procurando dormir comigo. E, para falar a verdade, muitos homens, tambem.

– Nao duvido, Didi. Mas isso tambem nada tem a ver com o caso.

– Voce falou comigo muito mais do que dez minutos, por isso nao me venha com essa desculpa. Tivemos uma longa conversa no Suicide Six. Se voce nao se lembra, eu me lembro.

– Tudo isto e ridiculo – disse eu, o mais firmemente possivel. – Sinto vergonha por ambos.

– Nao ha nada de ridiculo no amor.

– Que amor, Didi? – explodi.

– Eu estava apaixonada por voce ha tres anos atras… – A voz dela comecou a tremer e lagrimas, reais ou forcadas, vieram-lhe aos olhos, brilhando a luz do abajur. – E depois, quando o vi de novo, senti que ainda estava… Sera que voce se acha demasiado velho e gasto para acreditar no amor?

– Nada disso. – Resolvi apelar para a crueldade. – Apenas tenho um certo codigo. E ele nao inclui fornicar com menininhas bobas, que se atiram nos meus bracos.

– Que palavra tao feia para descrever uma emocao tao bela! – Agora, ela estava mesmo chorando. – Nunca pensei que voce fosse capaz de falar assim.

– Sou capaz de ficar furioso – disse eu, em voz bem alta. – E de me sentir um idiota. E o que esta acontecendo comigo neste momento.

– Seria bem-feito – disse ela, entre solucos – se eu comecasse a gritar e a pedir socorro, dizendo que voce tinha tentado violar-me.

– Nao seja monstruosa, mocinha. – Levantei-me, a fim de ameaca-la. – Para seu governo, quando entrei no quarto, eu estava com uma amiga…

– Amiga! – repetiu ela. – Ah! Uma daquelas coroas!

– Isso nao interessa. Se voce comecar a gritar, ela dira a todo mundo o que viu quando entrou no quarto… voce, dormindo nua, na minha cama. Isso acabaria com sua historia, e voce teria de sair da cidade a toque de caixa.

– Quero mesmo sair desta horrivel cidade. E o que interessa e o que a gente tem na consciencia.

Procurei outra forma de ataque.

– Didi, minha filha…

– Nao me chame 'minha filha'. Nao sou sua filha.

– Esta bem, nao vou chama-la 'minha filha'. – Sorri para ela. – Didi, voce nao quer que eu seja seu amigo?

– Nao, quero que voce seja meu amante. Todo mundo consegue o que quer – choramingou ela. – Por que so eu e que nao?

Dei-lhe meu lenco para ela limpar as lagrimas. Tambem assoou o nariz e dei gracas a Deus pelo fato de a porta se fechar automaticamente e ninguem poder abri-la por fora. Nao lhe disse que, quando ela fosse da minha idade, saberia que nem todos conseguem o que querem… pelo contrario.

– Voce hoje me beijou, quando saimos do teleferico – choramingou. – Por que fez isso, se nao estava com vontade?

– Ha beijos e beijos – respondi. – Desculpe se voce nao entendeu.

De repente, ela se descobriu e sentou-se na cama, bracos estendidos.

– Tente outra vez – falou.

Recuei um passo, involuntariamente.

– Vou-me embora – falei, o mais convincentemente que pude. – Se voce ainda estiver ai quando eu voltar, vou telefonar para sua escola para virem busca-la.

Ela riu.

– Covarde! – falou. – Covarde, covarde!

Dona da situacao, ela continuava dizendo 'covarde' quando sai do quarto.

Desci ate o bar. Estava precisando de um drinque. Felizmente nao havia ninguem conhecido, e sentei-me num banco, contemplando meu copo. Pensara que podia viver de acidente em acidente, pegando tudo o que se me deparava: o tubo de papelao no chao do quarto 602; Evelyn Coates em Washington; Lily em Florenca; a extraordinaria proposta daquele provavel lunatico, Miles Fabian, algo ensanguentado no lugar onde eu lhe acertara com o abajur; comprar um cavalo de corrida; investir num filme pornografico frances; negociar com soja e ouro; dizer 'Por que nao?' quando Fabian sugerira convidar uma inglesa desconhecida para nos acompanhar; especular com terras suicas; entrar com metade do dinheiro numa aposta 'pra valer' contra um rico e vingativo jogador americano.

Вы читаете Plantao Da Noite
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату
×