estranha. Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Sr. Grimes. Nunca acreditei que o senhor fosse um criminoso.

– Obrigado – falei.

– Um bom dia de esqui – disse ele, automaticamente.

– Farei o possivel – retruquei.

Torcendo o botao, o homem retirou-se.

Fabian estava a minha espera diante do banco, metido no seu elegante traje tiroles. Parecia tao bem como sempre e ninguem poderia suspeitar de que passara metade da noite perdendo trinta mil dolares. Quando me viu chegar, sorriu, mas logo franziu a testa diante da expressao no meu rosto.

– Escute aqui, meu velho – perguntou ele -, aconteceu alguma coisa?

Eu nao sabia por onde comecar, de modo que disse:

– Nao, esta tudo bem.

– Soube do que aconteceu com Eunice, que ela foi embora. Imagino que deva ter sido um choque para voce. – A propria imagem da simpatia discreta.

– Cada coisa a seu tempo – disse eu. – Vamos primeiro tratar do assunto financas. – Deixaria para falar sobre Eunice numa outra ocasiao, quando eu ja tivesse esfriado e nao houvesse perigo de lhe dar um murro no queixo.

– Sinto muito – disse ele, pegando-me pelo braco e entrando comigo no banco. – Sloane teve uma sorte danada, ontem a noite. Assinei uma promissoria, mas ele quer tudo em dinheiro. Prometi pagar-lhe as quatro da tarde. Ja telefonei a Zurique para me mandarem o dinheiro, mas ha certas formalidades… – Em vez de completar a frase, ele deu de ombros. – Os banqueiros suicos!

Entramos e fomos atendidos, numa sala dos fundos, por um rapaz que logo ligou para o nosso banco em Zurique e falou durante longo tempo em alemao. De vez em quando, levantava a cabeca do telefone e olhava para mim e para Fabian, de onde deduzi que nos estava descrevendo minuciosamente. Perguntou o numero do meu passaporte e, felizmente, consegui recorda-lo. Ao fim de uma conversa de mais de quinze minutos com Zurique, desligou e disse:

– Muito bem, cavalheiros; as quatro horas, poderao sacar o dinheiro.

Assim que saimos do banco, Fabian disse:

– Prometi a Lily esquiar com ela esta tarde. Nao e necessario contar-lhe o que se passou, nao acha?

– Acho – respondi.

– Depois da noite de ontem, vai-me fazer bem tomar um pouco de ar – continuou ele. – Nao foi propriamente uma noitada agradavel. – Quando chegamos ao carro, que ele estacionara a poucos metros do banco, virou-se para mim e disse: – Escute, Douglas, estou preocupado com voce. Esta com um ar sombrio. Afinal de contas, perdemos so algum dinheiro…

– Nao e por isso que estou com ar sombrio – retruquei, e contei-lhe da visita do policial. So nao lhe falei sobre Didi Wales ou sobre Eunice ou sobre o fato de eu ter sido visto perambulando pelos corredores.

Ele riu, como se eu lhe tivesse contado uma historia engracada.

– E voce, roubou o colar? – perguntou.

– Ora bolas, Miles! – exclamei. – Que especie de sujeito voce pensa que eu sou?

– Estou comecando a conhece-lo, meu velho – disse ele. – E, afinal de contas, voce tem andado em hoteis.

– Em um hotel – repliquei. – E o maximo que se podia roubar la seria um par de abotoaduras das Lojas Americanas.

– Terei de lhe lembrar que voce roubou algo bem melhor do que isso? – retrucou friamente, dando-me a entender que ele bem podia acreditar que eu roubara o colar.

– Ora, va para o diabo! – falei. – Vamos esquiar.

Nao falamos durante toda a viagem de volta ao hotel. Nao foi dos melhores dias para a nossa sociedade.

Fabian esquiava bastante bem, fazendo os movimentos certos embora um pouco inadequadamente. Via-se que tinha tido bastantes aulas. Nao era imprudente e eu ia sempre bem a frente dele e de Lily, de modo a nao podermos conversar. Lily tentara sondar-me a respeito de Eunice.

– Puxa vida, Alma Gentil – perguntou ela -, o que foi que voce fez a pobrezinha da minha irma, para que ela fosse embora assim de repente?

– Pergunte a ela – retruquei. – Se alguma vez a vir.

– Oh, este foench! – exclamou Lily. – Poe todo mundo tao irritadico.

Tambem ela me vinha com o vento sul.

Sloane entrou no clube quando estavamos almocando. Avancou logo para a nossa mesa, suas botas fazendo ainda mais barulho do que o habitual. Tinha o rosto vermelho e triunfante e parecia ter estado bebendo. A dois metros de distancia ja se podia ouvir o seu ofegar. Pousei a faca e o garfo. De repente, ficara sem vontade de comer.

– Oi, caras! – saudou Sloane. – Que belo dia, hem?

– Lindo – disse Fabian, tomando um gole de vinho.

– Nao vai convidar-me a sentar a sua mesa? – perguntou Sloane.

– Nao – respondeu Fabian.

Sloane riu, seus olhos eternamente hostis.

– E disso que eu gosto – falou. – De um mau perdedor. – Enfiou a mao no bolso e tirou uma folha de papel de carta do hotel, com algumas linhas escritas. – Fabian – disse ele -, nao vai se esquecer disto, vai?

– Nao seja grosseiro – retrucou Fabian, friamente. – Ha uma senhora a mesa.

– Bom dia, senhora – disse Sloane, como se so entao reparasse em Lily. – Acho que ja nos conhecemos. No ano passado, em St. Moritz.

– Recordo-me bem do senhor – respondeu Lily, abruptamente seculo XVIII.

Sloane dobrou cuidadosamente a folha de papel e voltou a enfia-la no bolso. Depois, virou-se para mim. Bateu-me com forca no ombro e perguntou:

– Que diabos voce esta fazendo aqui, Grimes? Pensei que havia partido a maldita perna.

– Foi um erro de diagnostico – respondi.

– Como e, tem continuado a invadir quartos de hoteis?

Olhei em volta, preocupado. Sloane falara em voz alta, mas ninguem parecia estar ouvindo.

– So ontem a noite – respondi.

– Sempre com piadas, o garoto! – disse Sloane. – E tarado por sapatos. – Deu uma gargalhada, os olhos venenosos e injetados de sangue rodeados por rugas. Era o tipo de homem capaz de destruir, em apenas meia hora, relacoes diplomaticas entre duas nacoes amigas. So o fato de pensar que teriamos de entregar trinta mil dolares nessa mesma tarde aquele camponio americano fazia-me mal.

– Que tal o comercio de relogios, garotao? – continuou ele. – Tao prospero quanto no outro lado da Suica?

– Va para o inferno, Sloane – respondi, sentindo o sangue correr-me como novo pelas veias e o apetite voltar.

Ele riu, ininsultavel, pelos menos nesse dia.

– Cuidado com esse cara – disse para Fabian. – E manhoso. – E riu de novo. – Bem, ja que nao me convidam para almocar, acho que vou esquiar. Fiz serao ontem a noite e preciso sacudir as teias de aranha. Ate as quatro, no hotel, Fabian – falou, num tom que ja nao era brincalhao.

E saiu ruidosamente da sala. Fabian suspirou.

– As pessoas com quem se tem de tratar!

– Americanos – comentou Lily. Mas logo pos a mao no meu braco. – Desculpe, Alma Gentil. Nao quis ofende-lo.

– Os americanos sao como todo mundo – disse Fabian. – Ha os que nao sao para exportacao. Tenho visto cada ingles…

– Eu tambem – disse Lily.

– Esta todo mundo perdoado – falei. – Que tal mandarmos vir outra garrafa de vinho? – Meus nervos estavam precisando de uma boa dose de alcool, principalmente se estava pensando em esquiar depois do almoco. Alem disso, sentado ali a mesa, com Fabian e Lily calmamente entregues a degustar o almoco, senti-me tentado a investir contra os dois contando o encontro em Florenca e os detalhes do que Eunice me revelara em seu quarto na noite anterior. A tentacao de dizer a Fabian que nao queria mais nada com ele era forte e ter-me-ia dado imensa e imediata satisfacao, mas os nossos negocios estavam tao interligados que destrinca-los provavelmente levaria anos, se e que alguma vez isso poderia ser feito. Um gesto desses ainda tornaria as coisas mais dificeis, de modo que resolvi concentrar-me no almoco e na nova garrafa de vinho e nao dar ouvidos a conversa de Fabian e Lily.

– Sr. Fabian, Sr. Fabian… – Um jovem instrutor de esqui entrou correndo no restaurante, falando em voz alta e nervosa. Ordinariamente, os instrutores nao comiam na mesma sala que os hospedes, e as pessoas nas outras mesas olharam com evidente e antidemocratica desaprovacao.

– Sim? – Fabian fez sinal ao rapaz para baixar a voz. – O que foi?

– Seu amigo – disse o instrutor. – O Sr. Sloane. Por favor, venha. Ele estava enfiando os esquis…

– Fale mais baixo, por favor, Hans – pediu Fabian. Sabia o nome de todo mundo. Era uma das razoes da sua popularidade entre garcons e recepcionistas. – Que foi que houve?

– Ele caiu para tras – disse o instrutor. – Caiu como um tronco. Acho que esta morto.

Fabian olhou para mim com uma expressao curiosa em que eu poderia jurar que havia um brilho divertido.

– Bobagem, Hans – retrucou ele. – Acho melhor eu dar uma olhada. Lily, sera preferivel voce ficar. Douglas, quer vir comigo? – Levantou-se e encaminhou-se rapidamente, o rosto grave e alvo de todos os olhares, para a porta. Segui-o. Nossas botas de esqui soaram como um batalhao de infantaria atravessando uma ponte. Ou um rufar de tambores para um americano desbocado, com uma promissoria no valor de trinta mil dolares no bolso.

Uma pequena multidao estava agrupada em volta da saida das cadeiras aereas, onde as pessoas colocavam os esquis. De repente, a tarde parecia ter parado. Sloane estava deitado de costas, olhando para o ceu. Outro instrutor esfregava-lhe neve no rosto, que estava todo verde e roxo. Fabian ajoelhou-se ao lado do corpo, abriu o ziper do anoraque de Sloane, puxou para cima o sueter e a camisa pondo a mostra o peito do homem, cabeludo e branco. Comecei a tremer incontrolavelmente, os dentes batendo em espasmos involuntarios. Fabian curvou-se e encostou o ouvido no peito de Sloane. Apos o que parecia uma eternidade, levantou a cabeca, puxou a camisa e o sueter e fechou o ziper do anoraque.

– Acho melhor leva-lo imediatamente para o hospital – disse Fabian para os dois instrutores. – O mais depressa possivel. – Levantou-se e passou a mao pelo rosto, como se a esconder sua tristeza. – Pobre homem – comentou -, bebia demais. A altitude e o frio subito… Se voces o carregarem ate o teleferico – disse ele aos dois instrutores -, eu desco com ele. Telefonem pedindo que uma ambulancia esteja a espera la embaixo. Douglas, posso falar um momento com voce?…

Passou o braco sobre meus ombros e levou-me para o lado, dois amigos do recem-falecido querendo ficar a sos por um momento, a fim de minorar o golpe da subita perda. Parecia uma cena tirada de um filme de guerra classe B, pensei, desempenhando meu papel com conviccao. A multidao, agora maior, afastou-se respeitosamente.

– Douglas, meu velho – sussurrou Fabian, batendo-me no ombro como que a consolar-me. – Nao vou largar o cadaver. Quando descermos, tirarei a promissoria do bolso dele. Voce se lembra de

Вы читаете Plantao Da Noite
Добавить отзыв
ВСЕ ОТЗЫВЫ О КНИГЕ В ИЗБРАННОЕ

0

Вы можете отметить интересные вам фрагменты текста, которые будут доступны по уникальной ссылке в адресной строке браузера.

Отметить Добавить цитату
×