automovel. Pelo menos nessa tarde. A descricao que Lorimer fizera da Italia como sendo um pais lindo mas lamentava, povoado de gente desesperada, parecia apenas parcialmente correta.

Encontrei-me numa rua estreita e movimentada, a Via del Babuino, cheia de galerias de arte. Fiel a Fabian, olhei para as vitrinas. Numa delas estava exposto um grande quadro a oleo representando uma rua deserta, numa pequena cidade americana: a farmacia, a barbearia, o banco em estilo colonial, tudo no que parecia a noite de um dia frio no meio da zona das pradarias. Estava pintado com realismo, mas com um realismo acrescido de uma atencao obsessiva ao mais minimo detalhe, o que dava a impressao de uma visao fanatica e distorcida da regiao, ao mesmo tempo apaixonada e furiosa. O nome do pintor, que estava expondo individualmente na galeria, nao era americano… ou talvez fosse meio americano: Angelo Quinn. Levado pela curiosidade, entrei na galeria. Alem do dono do lugar, um sexagenario fragil e grisalho de colarinho alto, e de um homem jovem e mal vestido, com a barba por fazer, que lia a um canto uma revista de arte, eu era a unica pessoa presente.

Todos os quadros representavam cidadezinhas americanas ou velhos bairros em ruinas, aqui e ali uma casa de fazenda batida pelas intemperies e empoleirada num morro ventoso, ou uma ferrovia enferrujada, com charcos gelados refletindo um ceu escuro, os trilhos parecendo nao levar a nenhum lugar, como se o ultimo trem tivesse passado por ali um seculo antes.

Nao havia indicacao, nas molduras, de que qualquer dos quadros tivesse sido vendido. O dono da galeria nao me seguiu nem procurou falar comigo, lancando-me apenas um sorriso triste, de dentadura, quando o seu olhar encontrou o meu. O jovem da revista de arte nao ergueu sequer os olhos do que estava lendo.

Sai triste da galeria, mas tambem reanimado. Meu gosto artistico ainda nao estava suficientemente apurado para poder dizer se os quadros eram bons ou maus, mas eles tinham me falado ao coracao, tinham me lembrado, de modo indefinido mas inequivoco, algo que eu nao queria esquecer a respeito da minha patria.

Caminhei lentamente pelas ruas cheias de gente, meditando na experiencia. Era muito parecida com o que eu sentira com os livros aos trinta anos, quando comecara a ler a serio, a sensacao de que algo de enorme e enigmatico me estava sendo revelado. Lembrei-me do que Fabian dissera na manha em que tinhamos visitado o Museu Maeght, em St. Paul-de-Vence… que, depois que eu tivesse visto bastantes obras de arte, franquearia um certo limiar de emocao. Resolvi voltar a galeria no dia seguinte.

Perto do hotel, por acaso, reparei que estava passando pela alfaiataria em que Fabian me aconselhara mandar fazer uns ternos. Entrei e levei uma hora escolhendo tecidos e falando com o contramestre, que arranhava um pouco de ingles. Mandei fazer cinco ternos. Ofuscaria Fabian, da proxima vez que nos encontrassemos.

No dia seguinte, peguei uma lista das galerias de arte romanas expondo naquela semana e visitei-as todas, antes de voltar a mostra de Quinn. Queria ver se as outras obras de arte contemporanea me afetavam. Nao me afetaram. Realistas, surrealistas, abstratas, nenhuma me falava ao coracao. Voltei entao a galeria da Via Del Babuino e fui andando lentamente de quadro em quadro, examinando cada um deles com cuidado e espirito critico, para ter a certeza de que o que eu sentira na tarde anterior nao resultara de ter sido o meu primeiro dia em Roma, de ter almocado bem e tomado um bom vinho, de ter tido o prazer de conversar com um simpatico americano, apos uma semana de silencio.

O efeito que os quadros tiveram sobre mim foi ainda maior do que no dia anterior. De novo o dono da galeria e o jovem da revista de arte eram os unicos presentes, como se nao tivessem arredado pe nas ultimas vinte e quatro horas. Se me reconheceram, nao o demonstraram. 'Se posso mandar fazer bons ternos', pensei subitamente, 'tambem posso comprar um quadro.' Nunca comprara sequer uma gravura e nao sabia como fazer. Fabian tinha pechinchado com o marchand em Zurique, mas eu sabia que nao tinha jeito para isso.

– Desculpe – disse eu ao velho dono da galeria, que logo sorriu automaticamente. – Estou interessado em comprar o quadro da vitrina. E talvez tambem esse ai. – Estava de pe diante do oleo dos trilhos abandonados. – Pode dar-me uma ideia de quanto eles custam?

– Quinhentas mil liras – disse imediatamente o velho, numa voz forte e firme.

– Quinhentas mil… – Parecia uma fortuna. Eu ainda nao me acostumara ao dinheiro italiano. – Quanto e isso em dolares? – 'Sempre turista', pensei com raiva.

– Cerca de oitocentos dolares – respondeu ele, dando de ombros com ar desanimado. – Ou menos, com esse ridiculo cambio.

Eu ia pagar duzentos e cinquenta dolares por cada um dos cinco ternos, que nunca me dariam tanto prazer quanto um daqueles quadros.

– Sera que o senhor aceita um cheque de um banco suico?

– Claro – disse o velho. – Endosse-o em nome de Pietro Bonelli. A mostra acaba daqui a duas semanas. Se o senhor quiser, entregaremos os quadros no seu hotel.

– Nao e preciso – retruquei. – Eu proprio venho apanha-los. Queria sair da galeria com os tesouros debaixo do braco.

– Seria necessario deixar um deposito – disse o velho. – Como garantia…

– Dez mil liras chegariam? – perguntei, olhando na carteira.

– Vinte mil seriam o normal – replicou ele.

Dei-lhe vinte mil liras, disse-lhe meu nome e ele passou-me um recibo. Enquanto isso, o jovem mal vestido nem sequer levantara os olhos da revista. – Gostaria de conhecer o pintor? – perguntou o velho.

– Se nao fosse muito trabalho.

– Que nada! Angelo – disse ele -, o Sr. Grimes, colecionador dos seus trabalhos, gostaria de cumprimenta-lo.

O jovem finalmente levantou a cabeca.

– Oi! – falou. – Parabens. – Sorriu. Parecia ainda mais jovem sorrindo, com dentes muito brilhantes e olhos fundos e escuros, bem italianos. Levantou-se lentamente. – Venha dai, Sr. Grimes, vamos tomar um cafe para comemorar.

Bonelli estava colando o primeiro 'vendido' na moldura do quadro da vitrina, quando saimos da galeria.

Quinn levou-me a um cafe na mesma rua e pedimos cafezinho no balcao.

– Voce e americano, nao? – perguntei.

– Americanissimo. – Seu sotaque nao era tipico de nenhum Estado americano.

– Esta ha muito tempo na Italia?

– Ha cinco anos – disse ele. – Percorrendo o pais.

– Quer dizer que todos os quadros da exposicao tem mais de cinco anos?

Ele riu.

– Nao. Sao todos novos. Feitos de memoria. Ou inventados, como voce preferir. Pinto levado pela solidao e pela saudade. Da aos quadros uma certa aura, nao acha?

– Acho.

– Quando voltar aos Estados Unidos, vou pintar a Italia. Como a maioria dos pintores, tenho uma teoria. A minha e que e preciso sair da nossa terra para se saber como ela e. Acha-me louco?

– Nao, se os seus quadros se baseiam nessa teoria.

– Gosta deles?

– Muito.

– Nao o culpo. – Riu. – A optica que Angelo Quinn tem da sua terra natal. Nao os venda. Um dia eles ainda vao ter valor.

– Nao pretendo vende-los – repliquei. – E nao e pelo que possam vir a valer.

– Gostei de ouvir isso – disse ele, bebendo seu cafe. – Mesmo que fosse so pelo cafe, ja nao consideraria minha estada na Italia desperdicada.

– De onde voce tirou o nome de Angelo?

– De minha mae. Noiva de guerra italiana. Meu pai levou-a para os Estados Unidos. Ele era um jornalista insatisfeito, irrealizado. Cansava-se de um emprego e mudava-se para outra cidadezinha abandonada, ate que acabou se fartando. Pinto as andancas dele. Voce e mesmo um colecionador, como Bonelli disse?

– Nao – respondi. – Para lhe dizer a verdade, e a primeira vez na minha vida que compro um quadro.

– Pomba! – exclamou Quinn. – Pois continue comprando. Voce tem bom olho, embora eu nao devesse dizer isso. Tome outro cafezinho. Voce me fez ganhar o dia.

No dia seguinte, levei o cheque a Bonelli e passei uma boa meia hora olhando para os quadros que comprara. Bonelli prometeu guarda-los, se eu nao pudesse voltar no dia em que a exposicao encerrasse. A caminho de Porto Ercole, na sexta-feira a tarde, nao pude deixar de pensar que a minha primeira visita a Roma fora um sucesso.

CAPITULO XXII

Havia poucos hospedes no Pellicano e me deram um quarto grande e arejado, de frente para o mar. Pedi a telefonista que ligasse para a casa de Quadrocelli. Ele nao estava e so deveria voltar no dia seguinte de manha, informou ela. Pedi-lhe que deixasse recado de que eu estaria o dia inteiro no hotel.

Comprara petrechos de tenis em Roma, minha bolha sarara e, na manha seguinte, joguei em duplas mistas com uns velhos ingleses que tambem estavam hospedados no hotel. Apos ter tomado uma chuveirada, estava sentado no terraco, olhando para o Mediterraneo, quando a moca da recepcao surgiu com um homem baixo e moreno, metido numa velha calca de veludo cotele e num sueter azul, de marinheiro.

– Sr. Grimes – disse a moca -, este e o Sr. Quadrocelli.

Levantei-me e apertei a mao de Quadrocelli, que era aspera e calosa como a mao de um lavrador. Todo ele parecia um campones, a pele curtida do sol, o corpo forte e redondo. O cabelo e os olhos eram pretos, os movimentos rapidos e vivos. Tinha rugas fundas em volta dos olhos, como se toda a vida tivesse rido muito. Calculei que devia ter uns quarenta e cinco anos.

– Bem-vindo, amigo – disse ele. – Sente-se, sente-se. Que bela manha, nao? Que lhe parece a nossa vista? – perguntou, como se a vista, a costa rochosa da peninsula de Argentario, o mar banhado de sol e a ilha de Genuttri, que sobressaia a distancia, fossem sua propriedade particular. – Posso oferecer-lhe um drinque? – perguntou, tao logo nos sentamos.

– Ainda nao, obrigado – respondi. – Ainda e um pouco cedo para mim.

– Ah, excelente! – exclamou ele. – Ja vejo que o senhor vai me dar um bom exemplo. – Falava num ingles quase sem sotaque e rapido, como se mil pensamentos se sucedessem na sua cabeca, forcando-o a falar em alta velocidade. – E como vai o encantador Miles Fabian? Que pena que ele nao pode vir tambem! Minha mulher esta desolada. Apaixonou-se perdidamente por ele e minhas tres filhas tambem. – Riu alegremente. Tinha uma boca pequena, de labios curvos, quase femininos, mas sua risada era forte e masculina. – Ah, como a vida dele deve estar cheia de amores! E, ainda por cima, solteiro. Sabio, sabio. E um autentico filosofo, o nosso amigo Miles, nao acha, Sr. Grimes?

– Ainda nao o conheco bem – respondi. – Nossa amizade e recente.

– O tempo so lhe faz justica, principalmente se o compararmos conosco, pobres mortais. – Quadrocelli riu de novo. – O senhor esta aqui sozinho?

– Infelizmente, estou.

Ele fez uma pequena careta.

– Tenho pena do senhor. Num lugar como este… – Fez um gesto com a mao, indicando a magnificencia da paisagem. – O senhor nao e casado?

– Nao.

– Vou apresenta-lo as minhas tres filhas. Uma e linda, embora nao fique bem a um pai dize-lo, as outras tem muita personalidade. Cada qual com as suas virtudes. Mas nao tenho favoritismo. Quando Miles me telefonou de Gstaad, falou-me muito bem do senhor. Disse que, alem de ser otima companhia, o senhor possuia inteligencia e retidao, qualidades que nem sempre andam juntas, nos dias que correm. Mas eu diria o mesmo de Miles.

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