Nao achei conveniente desiludir o meu novo e generoso amigo.

– Como foi que o senhor conheceu Miles? – perguntou ele.

– Viajamos no mesmo aviao, vindo de Nova York. – Era verdade, embora eu nao o tivesse visto durante o voo e ele tambem nunca me houvesse dito que me tinha visto. Mas evitaria mais perguntas.

– E voces bateram certo assim, de estalo? – perguntou Quadrocelli, estalando os dedos.

'Bater' e 'de estalo' eram termos apropriados, pensei, lembrando que tinha batido com o abajur na cabeca de Fabian.

– E, de estalo – concordei.

– Como os casamentos – disse Quadrocelli -, as sociedades tambem sao concertadas no ceu. Tem alguma experiencia de vinhos, Sr. Grimes?

– Nenhuma. Ate vir a Europa, so bebia cerveja.

– Nao tem importancia. Miles tem paladar por nos tres. Digo-lhe, foi um dia de grande honra para o meu vinho, aquele em que Miles disse que estaria interessado em exporta-lo para todo o mundo, com o meu nome na garrafa. Cada vez que um americano disser: 'Gostaria de um Chianti Quadrocelli', vou sentir um arrepiozinho de orgulho. Nao sou vaidoso, mas ha certas coisas que envaidecem. E vai ser um vinho honesto, isso eu lhe prometo. Nao vai ter mistura de zurrapa grega ou de acido siciliano. Ah, as coisas que se fazem aqui na Italia! Sangue de boi, produtos quimicos. Sinto vergonha do meu pais. O nosso vinho se parece tanto com a nossa politica! Desacreditados, desvalorizados como as nossas liras. Mas isso nao acontece so na Italia. Se soubesse o que vai pela Franca! Eu, o senhor e o nosso amigo Miles vamos poder olhar para qualquer pessoa e dizer: 'Quando comprou o nosso vinho, o senhor nao foi enganado'. E, ao mesmo tempo, ficaremos ricos. Muito ricos, meu amigo! A sede e insaciavel. Vou lhe mostrar os numeros depois do almoco… o senhor vai dar-me o prazer de almocar comigo e com minha esposa…

– O prazer sera meu – retruquei.

– E uma das poucas coisas que o imbecil do nosso governo nao pode estragar – continuou Quadrocelli. – O meu vinho. Tenho uma grafica em Milao. O senhor nao faz ideia de como e dificil sobreviver. Impostos, greves, restricoes… Atentados a bomba. – Ficou subitamente serio. – Dolce Italia. Tenho que ter um guarda armado na minha grafica, durante as vinte e quatro horas do dia. Imprimo, ao preco de custo, uns panfletos inofensivos para uns amigos socialistas e estou sempre sendo ameacado. Nao acredite, Sr. Grimes, quando lhe disserem que Mussolini morreu. Meu pai teve de fugir para a Inglaterra em 1928… houve uma vantagem, e claro, aprendi a sua bela lingua… e nao me surpreenderei se, um dia destes, eu tambem tiver que fugir. Da direita, da esquerda, de cima, de baixo. – Fez um gesto de impaciencia, como se estivesse aborrecido consigo mesmo por demonstrar pessimismo. – Ah, nao leve tudo o que eu disser demasiado a serio. Vou de um extremo ao outro. Minha familia veio do sul e todos nos choravamos e riamos quase ao mesmo tempo. – Riu alegremente, recordando a versatilidade emocional da familia. – O senhor esta aqui para falar sobre vinho e nao sobre a nossa maldita politica. A eterna uva. Nem sequer os politicos e os ditadores podem impedir as uvas de crescerem. E os fermentos nunca entram em greve. O senhor e Miles escolheram o unico investimento que pode ser considerado um risco razoavel na Italia. Quando Miles falou comigo ao telefone, mencionou uma morte.

Comecei a ver que teria de ficar alerta as subitas mudancas de assunto na conversa de Quadrocelli.

– E, um amigo nosso – falei.

– Espero que nao tenha sido dolorosa.

– Acho que nao foi.

– Ah! – exclamou ele. – Somos todos mortais. – Abracou-se a si mesmo, como para ter a certeza de que o seu corpo continuava vivo. – Falemos de coisas mais agradaveis. Ja esteve na Italia?

– Nao – respondi, nao achando que devia incluir a viagem a Florenca, atras de Miles Fabian.

– Permita-me, entao, ser seu guia. E um pais maravilhoso, cheio de surpresas. Algumas ate boas. – Riu. Via-se que gostava de rir das proprias piadas. Simpatizara logo com ele, com a sua vitalidade, a sua saude, a sua cinica sinceridade. – Ja nao somos grandes, mas herdeiros de grandeza. Zelamos mal pelas coisas, mas elas continuam de pe, embora algumas em ruinas. Faco questao de que va a minha casa, perto de Florenca, e veja os vinhedos com seus proprios olhos, beba o seu vinho onde ele e cultivado e produzido. Tenho algumas garrafas na adega que lhe farao vir lagrimas aos olhos, isso eu lhe garanto. Gosta de opera?

– Nunca assisti a uma sequer.

– Vou leva-lo ao Scala, em Milao. O senhor vai ver o que e extase. Pensa ficar muito tempo na Italia?

– Isso depende, ate certo ponto, de Miles.

– Nao tenha pressa em ir embora, por favor. Nao quero que as nossas relacoes sejam apenas comerciais – disse ele. – Sei que parece bobagem, mas isso prejudicaria o vinho. Gosta de navegar?

– So andei em barcos pequenos, num lago que ha na minha terra.

– Tenho um pequeno iate de oito metros de comprimento, aqui no porto. Podemos ir a Genuttri. – Indicou, com a mao, a ilha, que agora parecia uma pequena nuvem no horizonte. – Ainda esta praticamente virgem, o que nao e pouco, nos dias que correm. Infelizmente, nao se pode nadar. A agua parece feita de safiras, mas e demasiado fria. Faremos um piquenique e tomaremos sol. O senhor vai querer viver la o resto de sua vida. Nos Estados Unidos, onde e que o senhor mora?

Hesitei.

– Em Vermont. Mas viajo muito.

– Vermont – repetiu ele, estremecendo. – Nao posso entender por que ha gente que gosta de morar no gelo e na neve. Como o nosso Miles, com a sua mania de esquiar. Ja lhe disse que ha uma casa ao lado da minha a venda. Uma linda casa, que eu podia conseguir bem barato. E, com o italiano dele… Podia viver como um rei. Com a idade dele, tinha uma boa chance de morrer antes que tudo virasse ruinas. Ouvi dizer que ele herdou um dinheiro… – sondou Quadrocelli, com uma expressao astuta, os olhos se estreitando. – E certo ou mero boato?

– Nao sei – respondi. – Como ja lhe disse, conheco-o ha pouco tempo.

– Muito bem – disse ele. – Vejo que o senhor e discreto. Se Miles achar por bem, ele mesmo me dira, nao e?

– Acho que sim.

– Permita que lhe pergunte, Sr. Grimes… Ah! – Fez um gesto de impaciencia. – Qual o seu nome de batismo?

– Douglas.

– O meu e Giuliano. Bem, permita que lhe pergunte, Douglas… qual o seu ramo de negocios?

Hesitei de novo.

– Bem, principalmente investimentos.

– Nao pense que sou curioso – disse Quadrocelli, colocando as maos a sua frente, num movimento de freio. – O fato de voce ser amigo de Miles e o bastante para mim. Ou para qualquer pessoa. – Levantou-se. – Bem, esta na hora do almoco. Pasta e peixe fresco. Comida simples, mas nunca tive uma dor de estomago desde que me casei. O medico diz que estou gordo, mas nao pretendo virar gala de cinema. – Riu de novo.

Levantei-me, ele enfiou o braco no meu e dirigimo-nos para a porta do hotel. Mas, antes de a abrirmos, a porta se abriu e Evelyn Coates surgiu ao belo sol italiano.

– Lorimer telefonou-me – disse ela. – Disse-me que voce devia estar aqui. Espero nao ter vindo atrapalhar.

– Nao, nao veio – garanti.

Talvez fosse a primavera no Mediterraneo, ou o fato de estar de ferias ou simplesmente longe de Washington, mas, fosse qual fosse a razao, Evelyn era outra mulher. A dureza e o ar autoritario que me tinham repelido, quando a conhecera, tinham-se dissipado. Ela estava mais meiga, mais tranquila, procurando nao ferir. Quando faziamos amor, eu ja nao tinha a impressao de que ela estava procurando desesperadamente algo que nunca encontraria. Mesmo naquela ultima noite de domingo em Washington, apesar da ternura, eu via agora que ela estivera tensa. Passavamos horas a sos, tomando sol, dando-nos as maos, falando de ninharias, rindo como criancas de pequenas coisas, como as nossas tentativas de falar em italiano com um garcom ou de fazer poses para as fotos que tiravamos com a maquina que Evelyn trouxera.

Ao ve-la chegar, o Sr. Quadrocelli deixara-nos diplomaticamente a sos, dizendo:

– Deve haver muita coisa que voce queira falar com a sua linda amiga americana. Podemos almocar juntos amanha, em vez de hoje. Minha mulher vai compreender. E as minhas tres filhas. – De novo a sua risada robusta ressoou. – Sabe, ja nao tenho pena de voce, Douglas. – Piscou o olho. – Nem um pouco.

Depois, telefonara durante a tarde, pedindo mil desculpas, para dizer que tinha recebido um telefonema e que tinha de voar nessa mesma tarde para Milao, pois tinha havido sabotagem na grafica.

– Imagine! – exclamou. – Ate num sabado. – Mas voltaria o mais depressa possivel, prometeu. E mandou cumprimentos para a bela americana. Telefonara depois do almoco, quando eu e Evelyn estavamos na cama, no quente e bonito quarto debrucado sobre o mar, todas as nossas fomes momentaneamente saciadas. Embora eu lamentasse a sabotagem na grafica de Quadrocelli, nao sentia o fato de nao poder almocar com ele, por mais simpatico que o achasse: teria mais tempo para estar com Evelyn.

O hotel estava praticamente vazio por nao ser temporada e era como uma luxuosa casa de campo, equipada com um pessoal simpatico e eficiente, as nossas ordens. O grande terraco, que pertencia ao quarto, era indevassavel e jaziamos nus ao sol, lado a lado, durante horas, bronzeando-nos. O corpo de Evelyn parecia mais suave e mais redondo. Em Washington, era duro e tenso, treinado para competir, o corpo de uma mulher que religiosamente fazia ginastica e tomava massagens para se manter em forma. Falavamos de varias coisas, mas nunca sobre Washington ou sobre o seu trabalho. Nao lhe perguntei quanto tempo ela poderia ficar comigo e ela nao disse quando teria que ir embora. Nao lhe contei a conversa que tivera com Lorimer no Tre Scalini.

Foi um interludio maravilhoso, sensual e despreocupado, nao perturbado por relogio ou calendario, num belo pais, cuja lingua nao falavamos e cujos problemas nao eram os nossos. Nao liamos jornais, nao escutavamos radio e nao faziamos planos para o futuro. Fabian telefonou-me diversas vezes para me dizer que as coisas estavam indo otimamente em Nova York e que estavamos ficando cada dia mais ricos, mas que, devido a certas complicacoes que nao me iria explicar por telefone, teria de ficar nos Estados Unidos mais tempo do que esperava. Quadrocelli mandara-me os calculos relativos ao negocio da vinha e eu os enviara a Fabian sem sequer olhar para eles. Tudo esplendido, disse Fabian, e, quando Quadrocelli voltasse a Porto Ercole, eu lhe podia dizer que aceitava suas condicoes.

– Incidentalmente – perguntei -, como foi o funeral?

– Um prazer – respondeu Fabian. – Ah, ja me ia esquecendo… seu irmao veio a Nova York me visitar. E bem diferente de voce, nao?

– E, acho que sim – falei.

– Ele diz que a companhia da qual voces sao socios promete. Contou-me do problema com os olhos e eu mandei-o ao meu medico em Nova York, que o esta tratando com um novo medicamento. O medico diz que ele vai ficar bom. Lily manda um abraco.

Naquela semana, nada podia sair errado.

Fomos a Roma, apanhar os meus cinco ternos, e hospedamo-nos num hotel que dava para as Escadarias Espanholas. Como bons turistas, fomos a tudo quanto era lugar, almocamos na Piazza Navona, bebemos Frascati, visitamos o Vaticano, o Foro e o Museu Borghese, fomos ouvir a Tosca. Evelyn elogiou muito meus ternos e dizia que todas as mocas por que passavamos olhavam para mim. Ja eu nao era cego ao fato de que praticamente todos os italianos por que passavamos olhavam para ela.

Num dos nossos passeios, levei-a ate a Galeria Bonelli. O quadro representando uma cidadezinha americana ainda estava na vitrina, com o 'vendido' na moldura. Nao disse a Evelyn que o tinha comprado. Queria saber o que ela achava dele. Ela era muito mais sofisticada do que eu e, dividindo um apartamento com a dona de uma galeria, devia estar muito mais acostumada a apreciar arte moderna. Fiquei em silencio ao lado dela, ambos olhando para o quadro. Se ela dissesse que nao valia nada, eu provavelmente nao iria buscar o quadro nem nunca lhe diria que o havia comprado.

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